terça-feira, 23 de março de 2021

#17 - CONTO DO NATAL (João de Araújo Correia, 1899-1985)

 

Nesse ano, o Menino-Jesus, que o padre deu a beijar no dia de Natal, na arruinada capela do lugar, foi um menino vivo, um menino de carne e osso. Eu conto... A D. Rita de Cásia, governanta do Comendador Clarimundo, andava pejada, como sucedia em cada Inverno. Mais do que isso: desde o meado de Dezembro que a boa cuvilheira andava para cada hora. Na véspera do Natal, à noite, cansada de enganar o mundo com o ventre cilhado por demais, caiu à cama com uma dor de cruzes. Mandou chamar a parteira e vamos a isto: deitou cá fora um rapagão loiro e rosado como quem o fizera -- por enquanto não se diz nada... Nasceu o menino quando o galo cantou pela primeira vez. A parteira, uma comadrona mais velha do que a sé de Braga, já sabia que tinha de embrulhar o menino bem embrulhado num xale e levá-lo para longe do povo -- para o enjeitar. Era o costume. Fizera isto, de malhoada com a governanta, aí umas dez ou doze vezes. O Comendador era rico mas avarento. Dera de uma assentada muito dinheiro aos pobres quando era novo, mas isso era só para ser Comendador. Nunca mais gastou cinco réis em caridades e até jurou a si mesmo nunca se casar para não ter encargos de família. Portanto, se a governanta gravidada, isso era lá com ela. bastardos de portas dentro é que não queria. De maneira nenhuma! Tanto mais, que ele sabia guardar decoros à parentela: uma vergônteas, disseminadas pela província, aqui e acolá, duma velha haste apodrecida -- o tronco dos Mongroivas. Essas vergônteas lisonjeavam-no como parente honrado desde a pele até o tutano dos ossos. Queriam-lhe todos muito e à porfia. Visitavam-no amiúde, embora ele se esquecesse sempre de lhes oferecer um cálice de vinho ou uma pinga de chá. Iam-se embasbacados, mas, daí a uma semana ou duas, voltavam restabelecidos da encavacadela. Podia muito com eles o cheiro do ouro, que o Comendador exalava. Era uma atracção... Na noite de Natal, não lhes digo nada: vinham todos, porque o Comendador, nessa noite, dava-lhes mesa franca. Havia quem dissesse que poupava dinheiro na roda do ano, para o gastar numa ceia, com primos e primas. Era um esbanjar de iguarias, que só visto! Depois, tudo aquilo regado de bons vinhos: malvasia, alvarelhão e muito vinho velho para abafar os doces. Na memorável consoada a que me reporto, enquanto a governanta gemia, num cabo da casa, com as dores do parto, a parentela do Comendador, com o freio bem tirado, caía em peso na sala de jantar. Quem animava os novos a comer eram as velhas, pois diziam, com muita convicção e muita experiência: na noite de Natal, nada faz mal. Enquanto a governanta, num cabo da casa gemia com as dores do parto, os Mongroivas comiam e bebiam com fome e sede de três dias. É claro que nunca suspeitavam da gravidez da governanta. Como suspeitariam do parto? Quando souberam que ela estava muito doente, romperam a chorar -- ternura que muito agradou ao primo Comendador. Ai! aquela governanta era uma santa! No fim da ceia, rezaram pela saúde dela um Padre-Nosso  e uma Ave-Maria.

Quando a parteira, com a criança embrulhada no xale, saiu de casa para a enjeitar, a noite estava escura como devia ser o mundo antes de haver luz. A velha, pata não cair, coseu-se com as paredes das casas. Sem medo nenhum, porque era animosa de seu natural e andava afeita àqueles errores nocturnos, procurou, com aquele embrulho ao colo, uma das quatro saídas do povoado. Em certo sítio, não teve outro remédio senão abandonar o corrimão das paredes para atravessar um largo. Então é que foram elas! Começou a caminhar às cegas. Enterrou os pés em lama. Perdeu as chinelas. Deixou-as ficar sepultadas no lodo. Sentiu aluir-se-lhe o chão num rego de água. Gritou. Lembrando-se porém da enorme responsabilidade da sua missão secreta, amarfanhou a boca da concha cadavérica da mão. Foi-se arrastando. Como porém houvesse perdido de todo a tramontana, era-lhe difícil, se não impossível, sair do largo. Resolveu alijar o pacote de carne recém nascida e fugir até encontrar de novo uma parede que lhe servisse de guia. Neste momento deu fé de uma lumieira baça que saía dum buraco e se alastrava na escuridão como nódoa de azeite num vestido preto. Era a lâmpada do altar mor da capelinha do povo -- ruína que voltava para o largo uma das faces negras. A parteira sentiu refrigerar-lhe a alma à vista dessa luz. Viu nela um aviso de Deus para meditar um momento nas contas que lhe havia de prestar quando morresse. Encarou em si própria e sentiu-se repelente. Já todos os cantos lhe cheiravam à campa. No entanto, era ainda sem pejo  que aparava nas mãos encarquilhadas um menino caído do ventre de sua mãe para o expor, no limiar de qualquer porta, à mercê dos caprichos do tempo e da fortuna. Fazia isso pata ganhar dinheiro. Não podia ter amnistia celeste o acervo dos seus crimes. Que poderia tentar para que nosso senhor se condoesse dela? Naquela noite, em que Jesus nascia numas palhas, já com o perdão expresso nos lábios inocentes, que podia ela fazer para se mostrar arrependida de haver pecado tanto? Naquela hora, com aquele inocentinho ao colo, que boa acção poderia ela executar merecedora do reparo dum deus, que mal abria os olhos para abarcar num relance o mundo corrompido? Aproximou-se da capela, empurrou a carunchosa porta lateral, que dava para o largo, sumiu-se no templo, e depositou o menino sobre o degrau cimeiro dum altar, cujo tampo se abria todos os anos, pelo Natal, para mostrar às crianças atónitas e curiosas as maravilhas ingénuas do presépio.

-- Deixai estar, que o menino este ano há-de ser de carne e osso! -- exclamou a velhinha, já um pouco jubilosa da sua graça e contentíssima por haver praticado uma acção, que lhe parecia boa. Deixai estar, que este ano o menino há-se ser de carne e osso...

Quando a velhinha saiu da capela, já o céu se tinha esclarecido um tudo-nada. Tanto, que a pobre criatura encontrou as chinelas e atinou com o caminho que a levou à toca onde vivia. Felizmente, que não topou vivalma! Deitou-se e dormiu sossegada.

No dia seguinte, pela manhã cedo, à hora da missa, rezada na capelinha vetusta pelo mais desbocado e caritativo padre que a freguesia tem tido, sucedeu que o celebrante, com o menino ao colo e lágrimas na face de oitenta anos, vocifereva:

-- Este ano o Menino é de carne e osso. Beijai-o nos pezinhos, que já o fiz cristão. Quem sabe se algum de vós será o pai dele? Quem me dera apanhar aqui a cadela que o enjeitou!

Muito descomposto, o padre subiu ao altar e aí pregou um lindo sermão. Esmaltou-o de obscenidades, mas como chorava e tremia, todo o auditório de fiéis chorou e tremeu com ele. Ainda não tinha acabado, quando o Comendador saiu do seu canto e avançou para o arco-cruzeiro. Virado para o sacerdote, disse:

-- Esse menino é meu filho e a mãe é a minha governanta. Diante de Deus e dos homens, aqui prometo adoptar a criancinha e receber a mãe como legítima esposa.

Os parentes do Comendador fugiram como se os enxotassem à pedrada. O povo levou em charola o Comendador. Deu muitos vivas. O recém nascido, a quem hoje chama o Menino-Jesus fez da suas no regaço de todas as senhoras. Deram-lhe tanto beijo, que o iam desfazendo. O padre chegou a injuriá-las pela maneira sôfrega como disputavam o inocentinho. Uma delas, mulher espirituosa -- ainda vive --, voltou-se para ele e replicou-lhe:

-- Vossa Reverência, aos anos que conta e ao bem que tem feito, já estava no céu, se não fosse tão malcriado...

Nota: Extraído de Contos Bárbaros (1939) para uma antologia de Natal, sem indicação de organizador, Lisboa, Arcádia, 1978. Divertida história aldeã de arrependimento, em que dois velhos, uma curiosa  e um padre, surgem como instrumentos beatíficos da Graça divina.

 

terça-feira, 9 de março de 2021

#16 - A GRANDE SUBVERSÃO (Manuel Alegre, 1936)


 

Eram terríveis as rotinas, quase um rito iniciático, uma sagração. Havia o dia de esfregar a casa, o dia de lavar a roupa, o dia de arear os metais, o dia de tomar banho. E também o dia de pôr flores aos mortos. Havia ainda o dia do remédio para as bichas e o dia do pente fino, à cata dos piolhos apanhados na escola.

Nada mais contava senão o que estava determinado para ser o dia desse dia. As mulheres ficavam possessas de cada tarefa, como tangidas por uma demoníaca alucinação. Era uma coisa obscura, essencial, que desordenava e reordenava a casa, as horas, os hábitos, os próprios humores. Ninguém podia quebrar aquele ritmo, que girava, obsessivo, à volta da mãe. Os homens estavam de fora, mas ao mesmo tempo dentro. Tinham de resignar-se à ordem de batalha de cada dia.

O pai escapava-se, pelo menos tentava, ausentando-se para dentro de si, sentado na cadeia, alheio aos ruídos, até mesmo às perguntas. Era o seu modo de resistir à teia tecida pela aranha infernal da rotina. Sentado na cadeira, olhando para longe, procurava manter um espaço inacessível à invasão dos deveres que roíam, como toupeiras, as próprias fundações da casa. Não era fácil. Quando menos se esperava, as criadas começavam de repente a levantar os tapetes, a virar as cadeiras de pernas para o ar, a arredar os móveis, a bater furiosamente nos tapetes pendurados no quintal. O pai levantava-se, às vezes resignado, às vezes revoltado. Então saía, batia com a porta, sumia-se. E só voltava uns dias depois.

Eu tinha medo daquelas operações de desarrumação e esfrega. Temia que o pai partisse e nunca mais voltasse. Mas ele acabava sempre por regressar. Durante uns dias, o frenesim afrouxava, havia uma espécie de trégua. Mas logo recomeçava. Eram assim os hábitos. As casas da vila estavam sujeitas a uma ordem preestabelecida. As pratas tinham de brilhar, e os cobres, os talheres, os vidros das janelas, os cristais. Era mais importante do que o pendor dos homens para a divagação e o silêncio.

De certo modo não havia lugar para o pai nem para mim. Havia lugar para a nossa presença na ordem incessante dos ritos, a horas certas. Não para as cavalgadas solitárias que cada um tinha necessidade de fazer sem ser interrompido pela tarefa do dia. Mesmo que fosse o dia de receber visitas, com chá e bolos. Não tínhamos direito à nossa desordem interior, éramos prisioneiros de um espaço constantemente invadido por obrigações cujo sentido não podíamos entender. Não era por mal, era assim.

Eu tinha herdado do pai uma certa inclinação para a melancolia e para o outro lado das coisas. E talvez da mãe uma rebeldia que ela reprimia impondo-se e impondo-nos a ordem severa das rotinas.

Por isso comecei muito cedo a subversão interna: recusando o remédio das bichas, levantando as saias às criadas, jogando furiosamente o pião no chão recém-encerado, transformando os cobres e as pratas em alvos da espingarda de pressão de ar que o pai me tinha dado quando fiz a terceira classe, talvez com a secreta esperança de que eu começasse a disparar contra a ordem estabelecida dentro da casa.

E vieram as grandes cenas, os castigos, as lágrimas da mãe incapaz de dominar aquela insurreição que lentamente subvertia tudo. Eu crescia contra os ritos. E os ritos começaram a ceder. Não que a mãe capitulasse; era, por assim dizer, um reequilíbrio de forças dentro da casa. Ou talvez o prenúncio duma nova era contra a modorra que reinava no país, nas casas, nos silêncios dos pais sentados nas suas cadeiras, desistentes, rendidos. É certo que se ouvia a BBC, à noite, depois do jantar. Recordo sobretudo uma frase que para sempre me alvoroçou: "O homem tinha os pés inchados, estava morto." Por vezes o pai comovia-se, levantava-se e dia: Viva a Inglaterra. E eu sentia um tambor dentro de mim. Mas ele voltava a sentar-se, e nada mais acontecia.

As horas, os hábitos e as rotinas nada podiam contra o ritmo novo que irrompia dentro de mim. Foi primeiro uma espécie de delírio, quase uma alucinação. Eu acordava aos berros a meio da noite e começava a cantar uma canção sem nexo. Outras vezes desatava aos saltos e às cambalhotas e só parava exausto a chorar, nos braços da mãe, aflita, derrotada, quase esquecida do seu pequeno império de obrigações quotidianas.

Até que veio aquela estranha e súbita sensação de morte iminente: um frio na nuca, um arrepio, o mundo a desvanecer-se e eu a cair para dentro de um buraco negro. Era preciso que alguém me agarrasse e me prendesse as mãos com força nas suas mãos. A mãe teve de passar dias e noites junto de mim, a mão dela segurando a minha, sob pena de eu me desprender e cair sabe-se lá para onde.

Talvez eu tenha estado muito perto da morte. Nenhum médico o soube explicar. Nem sequer o espiritista que um dia me trouxeram, às escondidas do pai, já quase em desespero de causa. Talvez eu estivesse possesso de forças indomáveis. O certo é que as rotinas foram perdendo o seu domínio naquela casa. A mãe passou a ocupar-se mais de mim e menos dos seus titânicos deveres. O pai recuperou o espaço há muito perdido. Uma harmonia difícil, quase perigosa, subverteu os hábitos, as horas, os humores. Não direi que era a felicidade; era outro ritmo, a voz do sangue contra a ordem cega das coisas.

Pouco a pouco deixei de sentir aquele buraco enorme ao pé de mim. Estava de volta. Curiosamente, foi no fim da guerra. Talvez tenha sido coincidência, talvez não. Era um dia de Maio, sentia-se lá fora a festa, os foguetes, os risos. O pai tinha lágrimas nos olhos, ia à varanda e não se continha: Viva a Inglaterra. Agora com toda a força. E subitamente eu estava de volta.

Fiz então uma festa à mãe, sorri e levantei-me. Um melro cantava no jardim. E eu sentia uma espécie de assobio por dentro. Era um ritmo desconhecido, palavras, imagens. Algo que cantava e me chamava sem eu saber porquê, para uma página aberta. Ou talvez lá para fora: para o Sul, para o Sul.

Nota: Apesar de arrolado num livro de contos, estamos perante uma rememoração poética de episódios domésticos da infância. Um retrato de uma pequena aristocracia / burguesia provincial na primeira metade da década de 1940, com o marcado papel matriarcal intramuros, e o despontar de uma vocação poética anunciada por aquele assobio por dentro.

O Homem do País Azul (1989); 7.ª ed., Lisboa, 2009