quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

#15 - UM PEQUENO ROMANCE (Conde de Arnoso, 1855-1911)


 

«A quem logo de manhã cedo em Vizela vai para o banho, não pode passar despercebida uma rapariga dos seus dezoito anos mal contados, que ali adiante à esquina da botica, sentada no granito do passeio, vende chapéus de palha, que ela própria, num labor incessante continuamente fabrica. Nesse pequeno e animado recanto, onde outras mulheres vendem em redondos açafates saborosas donas Joaquinas -- afamadas pêras do Douro -- e em cestos, forrados de brancas toalhas de grosso linho, alvo pão de trigo, é a delicada figura da rapariguita dos chapéus, que, com o seu ar de uma melancolia estranha, destaca pelo contraste do seu calmo sossego com a grita azafamada das vendedeiras em redor.

Com o molho das palhas de centeio humedecidas, entalado debaixo do braço esquerdo, vai compondo sem desviar os olhos do trabalho, a comprida trança de onze pernas, que achatada entre os dedos, se lhe vai enrolando no braço, à medida que vai crescendo. Enquadra-lhe a perfeita oval do rosto um lenço de chita amarelo e desbotado; os cabelos louros e crespos, acendem, com os seus fulvos tons de oiro vivo, uns restos de frescura na passada cor do lenço; é pálida, de uma palidez doentia, que nos faz pensar na morte escura; os seus olhos verdes e claros, brilham frouxamente do fundo das pisadas olheiras que os cavam; o colete minhoto de cotim, sem barbas, aperta-lhe carinhosamente o busto fino, pondo em evidência, sob a camisa de estopa, o tímido relevo gracioso dos seios virginais.

Junto a si, sobre o pequeno e tosco banco de madeira, tem a alta ruma dos chapéus já feitos.

Se um freguês se acerca dela, ergue então os lindos olhos pisados, e só interrompe a sua trança para receber na palma da mão os magros cobres por que vende os seus chapéus.

À tarde, quando esse recanto mais se anima e as doceiras chegam com os tabuleiros de rebuçados, aparece o dentista da aldeia, que é ao mesmo tempo pedicuro,, com o seu rosário de dentes passado a tiracolo, abancando também ao lado, dispondo sobre uma velha mesa de cozinha uma cadeira de pau enfraldada em paninho vermelho, sobre que destacam, enfileirados sobre um quadrado de cartão, nojentos calos fenomenais, extirpados a gretados pés de lavradores em vez da rapariga é então a mãe, envelhecida pelos rudes trabalhos do campo, que ocupa o seu lugar.

A filha foge talvez ao reboliço da estrada, essa larga fita desigualmente bordada de prédios abrasileirados, onde de preferência passeia num vai-vem continuado a chusma de banhistas, pobres e tocadores.

Mendigos, aleijados e andrajosos, arrastam-se pedindo esmola numa cantilena arrepiante; cegos com a cabeça erguida, à busca da luz que de todo lhes fugiu, passam guiados pelas mãos de míseras crianças; a mulher da harpa e o homem da rabeca, cegas de viola, galegas de pandeiro com as curtas tranças caídas atadas na ponta, levam atrás de si ondas de basbaques, que pasmam e fazem roda logo que a desafinada música principia; às portas dos hotéis organizam-se me grande grita as alegres burricadas; raras carruagens de luxo, com os cocheiros abafados em fartos sobretudos brancos por um calor de rachar, passeiam banhistas venturosos, que há vinte anos assombram a província com o luxo das mesmas equipagens; crianças lindas, alegres e felizes,  abrigadas por grandes chapéus de palha, correm na frente das mamãs ou das criadas; outras, enfezadas e raquíticas e já tolhidas do reumático, pobres seres que entram na vida pela larga porta do sofrimento e da dor, por onde todos nós, velhos, um dia, teremos de sair, vão nos carros de doentes abafadas, com o seu arzinho triste de uma melancolia profunda; lavradores e lavradeiras que recolhem do banho da tarde caminham lentamente, agasalhados nos lençóis de banho e nas saias de flanela escura que põem à cabeça; um doido com a sua cabeça de apóstolo de retábulo de igreja, inofensivo, apesar do forte cacete com que bate no chão as longas e lentas passadas, é seguido pelo rapazio, que às furtadelas lhe puxa pelas abas do casaco esfrangalhado; brasileirinhas de olhar lânguido, vestidas ainda na rua do Ouvidor, calquinham com os seus sapatos amarelos a poeira da estrada, amparadas a finos varapaus ferrados; os papás, ventrudos e com ricos brilhantes no peitilho da camisa, vão deitando para o ar fumaradas de charuto e de importância, cruzando, desdenhosos, garotos calçados em chinelas, filhos de pequenos lavradores remediados, que daqui a vinte anos, passearão também por este Minho risonho, -- se a febre amarela os não levar a breca -- as suas belas apólices e a rica comenda de Cristo!

E é positivamente este confuso rumor de romaria que a rapariguita dos chapéus evita fugindo para longe. Para onde? Quantas vezes, passando junto ao cemitério, que em declive vem morrer na estrada, alegre e risonho, com os seus muros caiados, ou então da ponte, olhando o fundo vale assombreado, fizemos a nós mesmo esta pergunta?

Ontem à tarde, descendo ao banho mourisco, e de lá seguindo sempre o rio, à sombra de belas árvores -- carvalhos, que as vides abraçam; esguios freixos enramilhetados no alto; amieiros finamente recostados; tristes salgueiros de folha miudinha; raros castanheiros de onde agora, ao menor sopro da aragem, caem as candeias como grandes lágrimas douradas -- pisando sobre a relva fresca mimosas flores silvestres e escutando enleados a festiva música dos pássaros, caminhávamos sonhando, quando, de repente, do outro lado, um canto triste, como o de uma alma penada, se elevou vibrante, fazendo calar nos ramos as tímidas toutinegras e na nossa alma esvair-se como fumo o inexplicável, o indefinível enlevo, que a nossa fantasia ia acalentando. Sentada sobre umas pedras, mais pálida do que nunca, e compondo a interminável trança, ere ela que soltava em notas cristalinas os fundos, magoados, gemidos do seu dilacerado coração, não despegando os olhos da corrente, que corria mansa e límpida, beijando junto às margens as verdes frondes dos fetos.

Quase ao mesmo tempo, de entre os milhares da margem onde estávamos, a voz roufenha de um homem gritou imperativamente:

--Eh! rapariga, basta hoje da maluqueira do rio; é saltar à bouça e recolher o gado, que vão sendo horas.

A voz da rapariga estrangulou-se-lhe na garganta; levantou-se, e, sempre fazendo a sua trança foi subindo vagarosamente a encosta. As toutinegras recomeçaram nos ramos, contentes, a cantar. O homem, um pouco adiante, seguia o mesmo trilho que eu ia pisando. Apressei o passo, chegámos juntos ao portelo.

--Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

-- Para sempre louvado, -- respondi; e logo, sem mais rodeios, perguntei-lhe se a moça era sua criada.

-- É minha filha e tem sido os meus pecados, senhor.

--Os seus pecados?!

Então, trocando os vv pelos bb, explicou-se na sua linguagem pitoresca, que, haveria uns bons dez anos, pelo inverno, guardando ela os bois com um rapazote da mesma idade, que era seu criado, ali por aquele mesmo sítio, o rapaz caíra ao rio e fora encontrado morto perto do açude da azenha. Desde aquele dia, a rapariga, sempre que podia, fugia de casa, e, a modos apatetada, ficava horas inteiras sentada naquelas pedras a olhar para o rio.

-- Por mais bordoada que lhe dei, não me foi possível arrancar-lhe essa manha do corpo: aquela, senhor, vai de palmito à cova.

Estávamos perto das poldras, os bois bebiam sossegadamente, levantando de vez em quando as bondosas cabeças para o ar parado e calmo; ela, a meio do rio sobre uma pedra, com o molhos das palhas de centeio humedecidas entalado debaixo do braço esquerdo, compunha ainda, sem desviar os olhos da corrente, a comprida trança de onze pernas, que achatada entre os dedos, se lhe enrolava no braço à medida que crescia!...

Comentário: Uma jovem figura como que saída de um quadro delicado de Albert Anker, tão agradável, mas ao mesmo tempo perturbadora, numa oscilação que caracteriza o conto de Arnoso: o bulício da feira e do do caminho para os banhos estivais, com visível comprazimento do narrador que enumera e enumera, e a figura que viremos a saber trágica da pequena vendedora de chapéus.

Bernardo de Pindela, futuro Conde Arnoso (1855-1911), um dos Vencidos da Vida e amigo dilecto de Eça de Queirós, secretário particular do rei D. Carlos. Livro publicado a meias com o cunhado, o Conde de Sabugosa.