segunda-feira, 1 de abril de 2019

#14 - DIÁLOGO DOS BEM CASADOS (Henrique Abranches, 1932-2004)

-- Já apitou, Germano?
-- Não, ainda. Bom, Luísa, fala tudo já. O comboio não falta muito vai embora.
-- Sim, Germano, mas fala você. Que mais é?
-- É... trata bem o nosso miúdo, ouviu?
-- Sim, eu trato dele, eu não esquece menino, não esquece com certeza. O miúdo é nosso filho, não é? Por isso eu trato bem, não precisa recomendar. Vá, Dominguinho, fala adeus no pai, wé!
-- Olá Domingo, wé? Faz boa viagem e toma o juízo heim? A mãe to dá quando você faz asneira. Bom...
-- Ah! Germano... agora eu vai embora e você fica!...
-- Pois é, eu vou ficar, mas não te importa, Luísa. Depois eu vai também.
-- Vai sim! Não demora não. É uma pena assim...
-- Está bem. Bom, Luísa, não esquece falar no meu pai de pagar no sapateiro, os meus sapatos que ficou lá no ano passado. Olha aqui: assim eu não pode andar, tá a ver? Você sabe, não é? Não esqueça falar isso, não?
-- Está bem, Germano, fica descansadinho que eu não esquece. Mas você não demora muito aqui, ouviste? Olha só: o Domingo já está a chorar com a mágoa no coração. «Lembalaça yomuxima». Coitadinho...
-- Coitadinho... diz nele que não chora assim, que o pai vai logo... sim, vai qualquer dia, quando Deus manda.
-- Deixa chorar o menino. Chorar é bom... éwé! O comboio vai embora, a máquina já bufou!
-- Não vai nada, Luísa! Só bufou, mais nada. Mas fala tudo depressa, ouviu? Tá aí vai embora.
-- Pois é. Olha, Germano: todos os dias vai visitar a mana Teresa, está bem? Coitadinha, está tão doentinha.
-- Está bem, senhora. É só?
-- Sim. Trata do miúdo dela que não tem mais ninguém no mundo. Manda doce para ele. Todos os dias não, que é muito caro, mas todas as semana não faz mal. Cada mês leva também assim uma coisa qualquer, umas peúga, ou uma coisa assim. Coitadinha a mana Teresa... ouviu Germano?
-- Ouvi. Fico carregado disso, descansa. Eu nunca esquece a família. Olha... Toto wé...
-- Hi! Germano! Germano wé! Ai meu Germano...
-- Oh! Luísa...
-- Toto wé! Germano!
-- Suntya! Foi aquele gajo, caramba! Foi ele que me empurrou. Está muita gerente hoje na Estação. Tanta gente assim nunca vi! Toto!...
-- É mesmo. Tanto barulho, a gente tem que gritar. Eu já pensei que tu vai e não vem falar comigo. Olha, Germano, afinal eu ainda quer falar uma coisa a você...
-- Fala então, já falta pouco o comboio vai mesmo.
-- Bom. Você vai prometer uma coisa a mim, está bem?
-- Eu ainda não sei... então como é?
-- Mas promete só primeiro, depois eu é que falo.
-- Não pode, Luísa, um homem não pode prometer assim à toa.
-- Ah... anda lá, promete assim belamente. É por causa do Dominguinho.
-- Pronto, mulher, está bem.
-- Já prometeu?
-- Então não ouviste?
-- Ah! Sim senhor. Sabe o que é? Bom, você promete não andar com as outras gaja, essas «muiungueira» da Kipata, ouviu?
-- Oh! Caramba! Deixa lá isso agora Luísa! Então quando está quase para ir embora começa a chatiar com essas manias, não é?
-- Promete, meu Germaninho...
-- Qual quê! Não chatia, home! muda lá a conversa!
-- ...

-- ...
-- Gosto quando você está a rir assim para mim. Porque não tira o fotografia? Põe a gravata e o casaco, tira a fotografia assim a rir e manda para Luanda. Assim a rir para mim.
-- Pois é. E no fim quem paga é Deus, não é?
-- Nada, homem, é só que eu gosto.
-- Gosta?
-- Eh!... Meu Germano fica hoje... eu vou embora no Luanda e você fica... meu coração está a chorar.
-- Não chora mais, Luísa. Não adianta. Olha tem o meu lenço e limpa essa carinha, filha. Olha, canta só, canta aquela cantiga da nossa terra: omuxima wé... omuxima wé pikena...
-- Ai, Germano. Não fala essa cantiga senão eu não aguenta. Ai o meu homem coitadinho, vai ficar aqui sòzinho...
-- Se não gosta daquela cantiga canta a nossa juventude, o «juventude de Catete»: «Doutolo Neto wé, vondali yatumo...»
-- Deixa as cantiga, Germano. Eu só quero chorar. Você vai ficar aqui sòzinho...
-- Paciência, Luísa, depois eu também vou. Vou no trás de você, faz de conta que vou a porseguir outra vez, como antes da gente manter.
Por acaso! Mas falta muito tempo não é?
-- Ah! Luísa, você também anda bem, ahn, tá a ouvir? Anda direito.
-- Já sabe, Germano, não precisa dizer isso.
-- Quando sai toma cuidado com os vadios. Bom. Eh! Agora é que pitou!
-- Wé! Vai embora já! A gente já vai! Eh! Germano, já tá a começar!
-- Adeus, Luísa! Adeus, Luísa! Boa viagem!
-- Adeus, Germano! Não corre assi, vai to cansar! Adeus wé! Adeus...
-- Adeus, Luísa... Oh! Adeus, Luìsinha. Toma conta no miúdo... Luìsinha adeus, té qualquer dia... adeus ADEUS toto é!...

Luanda, em S. Paulo, Agosto de 61


Diálogo (1962)
 


Nota - 2.ª ed., Lisboa, UCCLA, 2015, pp. 19-22. Um delicioso conto dialogado, como todo os que compõem o livro, redigido com inventiva e mestria.



 

terça-feira, 5 de março de 2019

#13 - DOS PERIGOS DO RISO (José Eduardo Agualusa, 1960)

quando parámos o jipe é que os vi. Estavam ali, à beira da estrada, meio escondidos pelo fragor do crepúsculo -- o velho e os seus lagartos. Eram lagartos enormes e tinham o pescoço enrugado como o do velho e os mesmos olhos miúdos e misteriosos. Ele reparou no meu interesse e disse o preço:
-- Cinco milhões, paizinho. Cada um.
Pareceu-me um preço justo. Valia a pena discutir:
-- Cinco milhões?! Por cinco milhões só se eles falassem...
O velho olhou-me muito sério:
-- Falar falam pouco, sim, meu pai. Mas riem muito.
Riam, os lagartos?! Riam de quê? O velho encolheu os ombros. Ele não sabia. Riam à toa, como os malucos, riam uns com os outros enquanto tomavam sol. Achei que só por causa daquela resposta o velho merecia o dinheiro.
Dei-lhe cinco notas, que ele alisou cuidadosamente antes de as guardar no bolso. Depois entregou-me o maior dos lagartos:
-- Chama-se Leopoldino, este, e é o mais espertíssimo.
Quis saber o que ele comia. O velho explicou-me que o bicho sabia tratar de si. Alimentava-se de moscas, baratas, mosquitos, mantinha a casa livre de insectos. Tentei brincar:
-- E além disso podemos contar-lhe anedotas, não é?
O velho não me respondeu. Debruçou-se sobre os lagartos e disse-lhes qualquer coisa. Pareceu-me que falava uma língua trazida de outro mundo. Falava uma brisa, um sopro, um rumorzinho vegetal e húmido. Entrei no jipe e fiquei a vê-lo desaparecer, uma sombra dentro da noite escura, com a sensação de que era ele que tinha feito troça de mim.
Porém, quando estávamos quase a chegar ao Sumbe, o lagarto começou a rir. Sei que parece estranho, mas é a pura verdade: Leopoldino ria. Não ria exactamente como uma pessoa, claro, ria como uma pessoa semelhante a um lagarto, mas ria. Eram gargalhadas secas, cínicas, que estalavam dentro do jipe de uma forma vagamente assustadora. Eu ouvi-o e não tive vontade de rir. O meu amigo, que conduzia o jipe, ficou ainda mais inquieto:
-- Essa besta está-se a rir de quê?
Encolhi os ombros (como fizera o velho). E eu sabia? Talvez ele fosse de rir à toa, como os malucos. Disse-lhe que os lagartos daquela espécie comunicam uns com os outros, às gargalhadas, enquanto tomam sol. O meu amigo, no entanto, tinha outra opinião:
-- Não! -- É óbvio que está a rir-se de nós!...
Aquela suposição instalou a desconfiança dentro do jipe. Abri a caixa de sapatos onde guardara Leopoldino e coloquei-o à nossa frente no tablier. Os olhos dele eram muito antigos. Todo ele era muito antigo Observámo-nos os três em silêncio. Leopoldino tinha um ar desafiador, talvez um pouco arrogante, mas não descobri naqueles olhos o mínimo lampejo de ironia. Tentei tranquilizar o meu amigo:
-- Os papagaios riem, até falam, mas o riso deles, ou aquilo que dizem, não tem significado nenhum. Ora os répteis são parentes das aves, porque é que não podem existir lagartos capazes de imitar o riso dos homens?
O meu amigo começava a ficar nervoso:
-- Não me lixes! Sei muito bem quando é que um lagarto se está a rir de mim...
Colocada a questão daquela maneira já era um assunto pessoal. Uma gargalhada é muitas vezes pior do que o pior insulto. Ainda por cima o riso de Leopoldino deixava campo aberto a todas as especulações: podia estar a rir-se da estupidez de dois sujeitos que compram um lagarto, na estrada Luanda-Sumbe, por cinco milhões de kwanzas; ou talvez soubesse alguma coisa (sobre nós) que seria preferível que ninguém soubesse (nem sequer a nossa consciência). Disse isto apenas para fazer conversa, mas o meu pobre amigo levou-me a sério:
-- Deve ser por causa daquilo com a Ana -- murmurou sombriamente -- o maldito bicho sabe coisas de mais.
Eu ignorava o que é que tinha acontecido entre ele e a Ana; nem sequer sabia quem era a Ana, mas achei melhor ficar calado. Devia ter sido alguma coisa de um ridículo estupendo. Se ele me contasse talvez eu não fosse capaz de conter o riso. E se eu me risse, naquela altura, isso seria o fim da nossa amizade.
-- O pior ainda não te disse -- confessei --, a acreditar no velho, ele também é capaz de falar.
-- Ele fala, o animal fala?! Não, isso já é demais!...
Encostou o jipe na berma da estrada, mantendo os faróis acesos, e saltou para o asfalto. Na mão direita segurava uma pistola.
-- Vou executar esse muadiê!...
Era a primeira vez que o via com uma arma. Saí do jipe em sobressalto:
-- É claro que não vais. O lagarto é meu.
Ele olhou para mim e percebi que não estava a brincar. O meu amigo tinha passado pela guerra. Dois anos no Cuíto Cuanavale.
-- O lagarto é meu -- disse-lhe --, deixa-me ser eu a tratar disso.
Tirei-lhe a pistola da mão, agarrei na caixa de sapatos onde estava Leopoldino e afastei-me alguns metros para o interior do mato. Os faróis do jipe iluminavam o capim seco, os altos cactos, o largo contorno de um embondeiro. Na noite imensa, límpida estrelada, só se escutava o cantar rouco de um grilo. Pousei a caixa no chão, apontei para ela e disparei três tiros. Quando o eco do último disparo se dispersou fez-se um fantástico silêncio. E então, subitamente, uma rajada de metralhadora, à minha esquerda, alvoroçou a noite. Fiquei um instante transido de pavor e depois voltei-me na direcção do jipe e comecei a correr. Atrás de mim, sobrepondo-se ao fragor do tiroteio, ouvi distintamente a gargalhada seca de Leopoldino. O meu amigo já estava ao volante:
-- Despacha-te muadiê, pouca sorte, parece que começaste uma guerra.
Enquanto mergulhávamos velozmente na noite, de luzes apagadas, ele voltou-se para mim:
-- Mataste o bicho?
Respondi com um grunhido. O que eu queria era sair dali.
-- Tinha de ser -- disse o meu amigo, e o sorriso dele brilhou na escuridão. -- O tipo sabia de mais!...


Fronteiras Perdidas (1999)

Nota - Uma obra-prima de humor e absurdo.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

#12 - AGADE E NIMUR (Mário de Carvalho, 1944)

Havia em Agade uma porta imemorial e no frontão tinha escrito: «Porta em frente da qual se não colhe o trigo.»
Veio o rei e mandou cortar o trigo em frente da porta.
Em Agade havia um templo velho, repleto de oferendas. O rei profanou o santuário e tolheu ao templo as oferendas.
Corria em Agade uma rua estreita, por onde, há séculos, era vedado passar.
Transitou-a o rei com seu séquito, um dia, e outro, e outro, queimando perfumes.
Os deuses curam que os homens não rompam proibições, ainda que reis sejam. De modo que qualquer obscuro deus se viu movido a intervir.
Por isso, os povos da montanha, em suas peles de cabra, pegaram aljavas e arcos e seus arremessões e fundas, e vieram-se a Agade, em espessas coortes.
Na porta inscrita foi exibida a cabeça e membros rotos do rei. No templo se restauraram os ídolos de antanho. A antiga rua embargada se mostrou coalhada de muito sangue.
Das gentes de Agade só um escriba restou, e verteu no barro uma «Lamentação sobre a cidade de Agade».
Foi-se logo o escriba à cidade vizinha de Nimur, e sendo aí o rei falecido o fizeram rei, que era bom espelho de sageza.
Havia em Nimur um portão chapeado que, diziam, dava para a sétima esfera, e por onde nunca ninguém tinha entrado. O rei forçou o portão, no estrondo de um aríete, e mandou fabricar mil longas lanças, de duras, aguçadas pontas.
Havia em Nimur uma fonte de que era proibido beber. Veio o rei e bebeu por ela, ordenou que todos os da cidade bebessem com ele, e mandou que lhe fabricassem mil arcos e suas flechas e aljavas.
Atravessava Nimur uma ponte velha, fechada de correntes, por onde ninguém ousava passar. Passeou-se o rei por ela durante todo um dia, desfeitas as correntes, e mandou edificar, e mandou edificar logo duas altas muralhas e seis torres de cantaria talhada nas pedreiras longes do Oriente.
Das serranias vieram  então pastores em fortes mesnadas de guerra. Derribaram uma muralha e outra, mas quedaram-se ante a terceira, atravessados de lanças, farpeados de setas.
E voltaram vencidos a seus caminhos de montanha.
Um qualquer ignoto deus tombou desamparado, desfez-se de encontro às areias, frente a Nimur. Seu diadema de filigrana diluiu-se em finíssima poeira dourada.
Quem quer que passe os limites tem de antever as altas vindictas e prover o seu resguardo. Mas por cada limite franqueado há um deus que se despenha lá de cima.
Esta a lição aprendida e revelada pelo escriba feito rei de Nimur.
Aflora ela nos «Mil louvores à glória de Nimur», redigidos no barro por todos os escribas da cidade.


Contos da Sétima Esfera (1981)

Nota - «por cada limite franqueado há um deus que se despenha». Ser um escriba o agente, é preciso notar.