tag:blogger.com,1999:blog-48993479997854097532024-02-07T04:00:26.835+00:00o conto português & outros contosUnknownnoreply@blogger.comBlogger19125tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-63480022737026724382021-08-10T00:40:00.000+01:002021-08-10T00:40:22.371+01:00#19 - VERMELHO (Ruben A., 1920-1975)<p style="text-align: justify;"><b></b></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><b><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhTMsFtUNhDjYG9g_7q4-J94uvh9xcgXjyB4LhwxY55RIKgZRf9BqekzQA2ApvDhGyPce-yfxmGPfzBBs-VsXXtZWINtxOiF5KSC_0OG_1-CkcS6RCpk84YMo1-nifbh7W_4i4qL3_L2sk/s365/RubenA..jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="365" data-original-width="250" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhTMsFtUNhDjYG9g_7q4-J94uvh9xcgXjyB4LhwxY55RIKgZRf9BqekzQA2ApvDhGyPce-yfxmGPfzBBs-VsXXtZWINtxOiF5KSC_0OG_1-CkcS6RCpk84YMo1-nifbh7W_4i4qL3_L2sk/s320/RubenA..jpg" /></a></b></div><b><br /></b><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Todas </b>as vezes que entrava numa sala onde estava gente ele fazia-se vermelho.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Era-lhe</b> normal corar quando alguém mentia. Sentia a mentira à distância e captava-a sem mais nem menos. O sangue dava-lhe tabefes desproporcionados e quase sufocava ao ver uma senhora a dizer quantos anos tinha. A mentira fazia-o sofrer e sentia o sopapar das veias ao vestibular-se nos hotéis dos países mais conhecidos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Morava </b>no bairro da Estrela. Era uma casa pequena mas alegre, onde uma palmeira fazia subir os pensamentos. Ouvia passar o eléctrico cheio de arfares de travões aos <i>buffs buffs</i> que o faziam pensar no momento da vida em que mais se cansava, quando subia por aquela encosta acima para ver a entrada da barra com o pôr-do-sol encarnado de bom tempo para o dia seguinte.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>A</b> casa tinha um andar térreo e um andar por cima. Tinha uma porta e quatro janelas e ele entrava e saía várias vezes ao dia.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Desde</b> novo que era corado e desde menino que sabia ler. Aprendera com facilidade a soletrar e a fazer as contas da tabuada sem que os outros meninos ligassem muita importância ao que ele dizia. O pior era quando a mentira se apoderava de alguns dos amigos da escola -- ele via-se aflito, não podia esconder a sua cor, ficava todo vermelho. Era certo e sabido que o outro menino dizia ir ter a casa da avó, mas na verdade a razão era que o menino tinha ficado a brincar com outros amigos e por isso não sabia a lição.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Ia</b> crescendo e ia corando. O mundo mentia tanto que ele sentia-se triste quando ao espelho via a cor dominante a berrar sem um gesto de simpatia ou piedade. Ia crescendo só -- era um apenas no mundo. Tratava-se a si mesmo como um apenas e nunca dizia apenas porque apenas no oral era feio. Ele tinha um gosto muito feio pelas outras cores e pelas outras cidades. Gostava de Lisboa porque não havia automóveis nem novos-ricos nem incultos nem bisbilhoteiros nem candeeiros de iluminação pública. Gostava de sair pelos parques e assistir às conversas dos noivos nos bancos mais populares de vista sobre o rio. Ali estava durante horas e, de vez em quando, corava pela falsa declaração de um noivo ao querer jurar o seu amor eterno a uma inocente que estava a ser convencida da beleza das palavras do estudante de medicina. Ele estava ali ao lado, vermelho como um pimento, quando o estudante pendurado sobre a pequena lhe contava os prazeres conjuntos de terem filhos a horas certas. Era tão bom se casassem dentro de dois anos: «Eu dava-te sempre tudo quanto me pedisses e só viveria para te fazer feliz. Casa comigo, podemos ir até casando particularmente de vez a vez conforme a época for propícia ao encontro do que é meu com o que é teu. O que estará a fazer aqui ao lado este homem tão encarnado, parece um pano de toureiro ou um lenço tabaqueiro dos almocreves de Colares.»</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Ele</b> não sabia onde é que eles se tinham conhecido. Talvez nalguma festa de Bombeiros Voluntários, e talvez até no clube local, onde a vida associativa proporciona o encontro entre indivíduos de sexo diferente, entre verdes e vermelhos. Ela devia ser empregada de escritório, pois trazia uma fita de máquina de escrever à volta do cabelo e o teclado em que falava era nacional. Ela contava-lhe que o patrão era muito bom para ela e lhe dava folgas quando queria e aumento de ordenado de seis em seis meses. Ele era muito respeitador Nesta altura o outro que estava ao lado ficava tão corado, tão vermelho que o estudante de medicina até disse baixinho para ela: «Este doente deve sofrer de doença artrítica, é um caso de gravidade, parece que vai rebentar.»</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Dali </b>ele passou para mais acolá. Desceu a avenida e começou a conversar sozinho, pois não via ninguém. Estavam todos a contemplarem-se nos altos das árvores e outros a estudarem-se em livros muito grandes que se viam pendurados às janelas. Ele conversava: era agradável ir por ali abaixo sem ninguém que o incomodasse. Podia conversar à vontade. Conversava com os anúncios luminosos em quadrados e rodelas encarnadas que estavam sempre a mentir. Ele só lhes dizia que não tinham que estar aborrecidos, pois ninguém olhava para eles. Os carros eléctricos estavam nos museus particulares das montras em evidência. Então entrou num bar e ficou calado, não corou. Ficou branco. Todas as mulheres falavam verdade e perguntaram se ele não queria ir com elas. Ele corou então ao dizer que tinha mulher e os filhos em casa à espera. Não podia. Não, não, não -- era mau ficar. Tomava só uma caneca das mais pequenas e partia.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Ele</b> sem família sentia-se como peixe manso dentro de aquário. Parecia um solitário sem excitações a passear de um lado para o outro e a olhar para todos com uma simpatia de apoteose. Mexia-se e andava-se de cima para baixo como quem se ignora de semelhantes e ao caminhar pelas ruas da baixa assoprava um nordeste que que fazia virar as pessoas ao contrário. Ele não se importava, nem sabia mesmo como importar-se naquele seu flagelo colorido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Um</b> dia de manhã resolveu casar-se. Levantou-se mais cedo, barbeou-se mais depressa, vestiu-se a correr, comeu sem apetite e foi pela porta fora. Queria casar. O sonho que tivera de noite mostrava-lhe uma noiva feita de boa pessoa e que vivia com os pais numa rua perto do Largo da Estrela. Ela esperava-o de braços abertos com os pais a darem palmas por terem encontrado um genro tão sério. Ele estava cheio de confiança, já não corava havia dias e tudo se apresentava bem. Ela era boa para ele e preparava-lhe tudo quanto ele mais gostava. Sentia-se feliz pela primeira vez na sua vida. Amolecia-se naquela espécie de felicidade que só se tem uma vez na vida e que faz perdoar os roubos mais infames. Era uma noiva agradável e sem complicações que aborrecesse a sua alma. Ela compreendia muito bem, compreendia como só compreendem as pessoas que não existem. Levava-o a longos passeios aos domingos e de mãos dadas saltavam as dunas mais próximas. Ao pôr-do-sol beijavam-se para depois voltarem a casa e na companhia da futura família cearem ao som de uma telefonia que era horrível pelas vozes monocórdicas dos seus cantores habituais. Isto parecia-lhe uma castração da natureza e às vezes desligavam o programa oriundo de festivais dedicados a colectividades organizadas para recreio de trabalho. O andar da casa dava para o Jardim da Estrela e era só atravessar os portões que se podia logo respirar bom ar. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Ela </b>nunca o vira corar e ele nunca lhe dissera que ficava vermelho quando mentiam ao seu lado. Ele pensava que isso talvez tivesse importância se houvesse filhos -- os filhos podiam sair aptos a ouvirem mentiras sem se complicarem epidermicamente. Gostavam muito de ir ao Jardim Zoológico, onde o roseiral em flor os encantava pela sua ternura plácida. Os pais às vezes também iam no passeio, mas outras vezes ficavam em casa a fazer planos. A filha ia viver com ele, pois a casa grande -- e que ficava ali perto -- servia muito bem para ambos e, até para mais, caso houvesse filhos eles podiam muito bem aumentar um andar à casa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Estava</b> ele a sonhar toda esta facilidade de vida quando acordou e disse para consigo que queria ir casar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Então</b> saiu de casa a correr e foi ao pé do Jardim da Estrela à procura da casa, ou melhor do andar, onde ela devia viver. Atravessou o Jardim, saiu o grande portão e olhou para todas aquelas casas sem saber bem onde é que ela estava.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Bateu</b> a uma porta que foi aberta por um mordomo muito compenetrado que disse: «Legação da República Argentina em Portugal!» Ficou gago. Não era ali. Ela era portuguesa -- não era de outros hemisférios. Não, ela devia morar ali ao pé. Pediu desculpa, tinha-se enganado, não havia dúvida. Talvez morasse num dos prédios mais acima. Era fácil encontrar. Mas, é verdade!, ele não tinha o nome dela? como é que a podia encontrar? Bateu noutra casa -- era a dos Croft de Moura. Vinha o Pedro a sair que lhe perguntou: «Posso ajudá-lo nalguma coisa?» O Pedro percebeu que ele estava aflito e como é boa pessoa quis logo ajudá-lo. «Não, disse ele, não deve ser aqui, desculpe mas creio que estou enganado.» Que coisa estranha, lembrava-se perfeitamente da casa e agora não era capaz de a encontrar. O Pedro disse que ia apara a Baixa, tinha muito que fazer e não o podia ajudar agora, mas talvez numa das casas mais acima, antes do quartel da Guarda Republicana, ele a pudesse encontrar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Veio</b> para o jardim e ficou a olhar para tudo o que não se via. Ficou abatido, perplexo, até se decidir a ir ali acima e bater todos os prédios à procura dela.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Pareceu-lhe</b> um prédio encarnado onde havia uma certa alegria de caixilhos e uma lembrança de outros tempos. Pensou que devia ser aquela a casa. Já não se lembrava bem porque no sonho tudo tinha sido tão rápido que nem lhe dera tempo para ficar com o número de porta e com o apelido da família. Não podia ser outra a casa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><br /></span></p><p style="text-align: right;"><span style="font-size: medium;"><i>(continua)</i></span></p><p style="text-align: right;"><span style="font-size: medium;"><b>Ruben A., <i>Cores </i>(1960)</b></span></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-12698770764236590782021-05-07T13:29:00.000+01:002021-06-07T14:37:41.428+01:00#18 - A VINGANÇA DE D. PEDRO (Antero de Figueiredo, 1866-1953)<p style="text-align: justify;"><b></b></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><b><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh-oD2ptmGxzMMU-a1VMVcQcjAQ8FJZ0_s8-Xc10_HOItvLLWpxSf3s2CItiAbF_I9JyaFOBUlaOlb3PRPTZJluNqrwzDXkmPKdyWnALEK7YBBKIAfaEVYg6xoKCQsSEQzUH-PmNc1V2S4/s374/Antero_de_Figueiredo_-_Ilustra%25C3%25A7%25C3%25A3o_Portuguesa%252C_19Dez1910.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="374" data-original-width="237" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh-oD2ptmGxzMMU-a1VMVcQcjAQ8FJZ0_s8-Xc10_HOItvLLWpxSf3s2CItiAbF_I9JyaFOBUlaOlb3PRPTZJluNqrwzDXkmPKdyWnALEK7YBBKIAfaEVYg6xoKCQsSEQzUH-PmNc1V2S4/w203-h320/Antero_de_Figueiredo_-_Ilustra%25C3%25A7%25C3%25A3o_Portuguesa%252C_19Dez1910.png" width="203" /></a></b></div><b><br /> </b><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Nos</b> paços reais de Santarém, D. Pedro esperava, impaciente, a chegada dos fidalgos criminosos. Mais de uma vez o rei passeara pela cortina do nascente e subira à torre albarrã, alongando a aguçada e sôfrega vista por cima de Almeirim, das lezírias do Ribatejo -- para além, muito para além, para as bandas de Avis, de Barbacena, de Elvas, de Badajoz, em ânsia exasperada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Uma</b> tarde, chegaram os presos. D. Pedro, que os esperava, tinha comido de festa; mas, mal recebeu o aviso, levantou-se da mesa com a boca cheia, mastigando viandas, atirou-se pelas escadas abaixo e correu ao encontro deles, à praça, no meio do povo curioso que, sempre engrossando, numa atordoadora vozearia, os vinha seguindo desde a Ribeira. Álvaro Gonçalves e Pero Coelho chegavam exaustos, envelhecidos, rotos, cobertos de pó e adobadas as mãos e os pescoços com uma soga de boi. D. Pedro, não vendo o Pacheco, e sabendo, instantes depois, porque não vinha, mordeu os dedos de raiva; mas, voltando-se para os outros, depois de os mirar de alto a baixo, com olhar voluptuoso e sarcástico, logo principiou a cascalhar um diabólico riso de contentamento e de escárnio, muito enganzarado, às vezes ganindo, gesticulando em desordem, batendo nervosas palmas, saltando diante deles, fazendo torcidas piruetas, convulsamente, como se de súbito o agitasse um violento ataque do mal de São Vito. Queria falar e não podia. A voz pregava-se-lhe na garganta, e, com a boca escancarada e a face contraída, fazia esgares de doente e de saltimbanco.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Espantosa</b> explosão de epiléptica alegria a desse apaixonado coração vingativo que, dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, durante anos, suspirou por esse delicioso momento de feroz revindita!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Em</b> pé, cobertos de pó, sem coifa, com os saios esfarrapados, os pés peados e sangrentos, as mãos atadas atrás das costas, as caras terrosas e os cabelos embranquecidos, na cinta a escarcela vazia de dinheiro e de punhal; -- em pé, os fidalgos portugueses esperavam altivos, fitando sobranceiramente os olhos nos olhos do rei. D. Pedro, sempre a rir, numa agitação crescente, aproximou-se mais deles, pôs-lhes violentamente as mãos nos ombros, agarrou-os, sacudiu-os, e, com a cara em cima da cara, ora de um ora de outro, os olhos em fogo e em fúria, os dentes cerrados, silvou-lhe no auge da cólera:</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- Assassinos!</b></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Depois, </b>começou a fazer-lhes perguntas sobre perguntas, atropeladamente, desmanchadíssimo nos gestos e na voz, aos guinchos, cada vez mais gago, voltando-se ora para o Coelho, ora para o Gonçalves, abanando-os pelos ombros, com os nervosos puxões das suas mãos iradas:</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- Porque </b>mataram Inês? Que conluios houve? Quem mais entrou na conjura? Quem mais? Que era que o rei meu pai tramava contra mim? Onde? Porquê? Matadores! Vamos! Quero saber quem ma matou! Os nomes? Os nomes?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>E</b> os fidalgos, em pé, firmes, brilhando nos seus olhos a luz galharda das convicções, olhavam o rei com supremo orgulho -- com a serenidade de quem está absolutamente certo de ter cumprido o seu dever; e, sempre cheios da mais nobre altivez, encaravam de alto no rei e não respondiam. Então, D. Pedro ordenou aos da escolta que os pusessem a tormentos, e ele próprio lhes torcia os braços, lhes pinçava a garganta com dedos de ferro, para os obrigar a articular palavras, a falar, a responder; e, cada vez mais enraivecido, com a boca cheia de espuma, repetia as perguntas, aos berros, esganiçado, cuspindo as palavras junto dos rostos, a babar-se, em arremetidas afrontantes, ameaçando-os com os punhos cerrados e trémulos de cólera, num estado de ira apoplética, em que os olhos inchados e rubros, rebolando nas pálpebras encarnadas, pareciam estoirar, e toda a sua figura prestes a explodir. Era um turbilhão! Uma só ideia absorvia o seu ser. O mundo era para ele aquela ideia. Mais nada sentia nem via. Se um trovão rebentasse nos seus ouvidos, não ouviria o som; se o queimassem com um ferro em brasa, não sentiria o fogo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>No</b> atropelo com que falava, não concluía as frases. Atirava com as palavras:</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- Quem</b> mais, quem mais?... Na conjura... Os nomes, os nomes!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Como</b> nada conseguisse dos fidalgos, que, nobilíssimos, nem na morte denunciavam segredos, começou a ultrajá-los com palavras baixas -- as mais desabridas e injuriosas; e, tomando do tagante de pontas de ferro, que sempre trazia à cinta, azorragou com ele, de alto a baixo, a cara do Coelho, que, louco pela dor e pelo enxovalho, cresceu em infernal cólera para o rei, cobrindo-o de insultos:</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- Cobarde!</b> Carniceiro de homens! Vilão ruim! Perjuro! Filho rebelde! Esterco de rei! Que a lepra da maldição te cubra! Algoz! Excomungado! Cobarde!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- Cobarde,</b> tu, cobardes vós, vilões, que vos não batestes comigo, um homem, cara a cara, cada um com as suas armas e a sua gente, como cavaleiros!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- Gafo!</b> Cobarde! Assassino! -- vociferava o Coelho.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- É</b> isto fidalguia?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>E</b> os outros, o Coelho e o Gonçalves, em coro, espumando ódio:</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- Vilão!</b> Vilão!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>D.</b> Pedro, radiante de os ver sofrer, mofava da sua cólera, e ria destampadamente, saboreando o infinito prazer de lhes prolongar a dor; de repente, encolerizou-se também e começou a bradar:</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- Cala-te,</b> mísero Coelho, que te vou esfolar vivo! Vilão, que sabor tem o teu coração? É a coelho bravo do monte?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>E, </b>em paroxismos de ira e de chasco, repetia para a multidão, gargalhando, as graçolas trágicas do coelho do monte!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>O </b>pavor cobria todos os rostos. A praça estava repleta de gente, e apinhadas as janelas, varandas e telhados de todas as casas. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- Olá,</b> rapazes, um espeto da ucharia! Tragam-me cebola e vinagre, que quero comer este coelho com molho de vilão!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Ria,</b> ria tragicamente! Em seguida, emudeceu. A sua fisionomia cobriu-se de negrume, encarando ora num, ora noutro fidalgo. De súbito, como num ataque, arremeteu contra o Coelho, lançou-lhe as mãos ao saio no lado esquerdo do peito, e rasgou-lho com unhas de ferro, como se quisesse dilacerar-lhe o arcabouço e arrancar-lhe o coração, que para ele era o órgão delinquente, onde existia a alma perversa que planeou, conluiou o assassínio da sua linda Inês.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Depois,</b> para os soldados, esfuziando rancor:</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- Tirem-me</b> já estes corações. Quero mordê-los!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>E</b> mandava que abrissem a um o peito, a outro as costas com machados, com facas, que arrancassem os corações e os trouxessem numa escudela para o jantar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- Sim, </b>para os postres! -- clamava.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Os</b> soldados, apavorados, não sabiam que fazer nem como fazer. Olhavam-se atónitos, indecisos; mas o rei ordenava imperioso. Então, despiram o Coelho e o Gonçalves, pondo-os nus da cinta para cima. Derrubaram-nos. Já infernais golpes de faca dilaceravam Pero Coelho, quando este, soerguendo-se arquejante, num desafogo de incomportável dor, com a mão esquerda crispada sobre o peito, como a arreganhar as próprias carnes, rouquejou para o algoz, com a boca escancarada, os olhos enormes de aflição e de desespero, e toda a sua nobre alma repleta de infinito orgulho fidalgo:</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- Vilão, </b>procura bem, que hás-de encontrar, aqui dentro, um coração, forte como o de um toiro e leal como o de um cavalo!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Pouco</b> depois, por entre ralas de aspérrimo estertor, expirou. Ao lado, de bruços, o Gonçalves gemia agonizante.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>E</b> a obra dos carrascos continuou à machadada, à lançada, grosseiramente, com pancadas incertas na tábua do peito e nas costas (pancadas que soavam cavas), com golpes errados, umas vezes nas costelas, outras no esterno, espetando as pontas das lanças como alavancas, fazendo estalar os ossos e soltar o sangue a jorros, por entre os gritos da multidão e as vozes de comando do rei, que assistia, ensinando os soldados; e lá conseguiram, por fim, a um, esfacelar-lhe o tórax, a outro, arrancar-lhe a espádua e pôs a descoberto os corações. Os homens tinham as testas luzentes de suor, as caras borrifadas de sangue, e as mãos e os braços, remangados até os cotovelos, tão rubros como se os tivessem metido num tanque de vermelhão. Os corpos dos fidalgos jaziam em poças de sangue que empapava os cabelos e as roupas, tinham os troncos rechaçados, e os olhos, horrivelmente abertos de agonia, olhavam parados para o infinito!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>O</b> rei, que havia subido aos paços, continuava o seu jantar. Moços de câmara serviam iguarias, que um trinchante cortava, vindas da mão do uchão. Outros criados enchiam de vinho as fartas copas de prata; e o copeiro-mor, em punho a agomia, cuidava em especial do púcaro do rei. Aos lados, encostados à parede, assistiam senhores, e à roda da mesa, coberta de almezares moiriscos, estavam de joelhos os moços fidalgos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>O</b> rei comia, quando lhe levaram numa escudela de prata os dois corações, rubros e quentes. D. pedro mirou-os engulhado, fazendo repulsivos esgares de nojo; em seguida, olhando-os com ódio, e vendo neles, concretamente, as almas dos seus inimigos, agarrou-os com as mãos convulsas, cravou-lhes unhas aduncas e espremeu-os rancorosamente, fazendo-os esguichar sangue; depois, sempre com olhos alucinados, levou-os à boca, mordeu-os, remordeu-os e estracinhou-os entre os seus dentes de tigre, sentindo o voluptuoso prazer de matar, às dentadas, as almas dos assassinos da sua amada Inês!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Levantara-se. </b>Tinha a boca e as barbas a pingar sangue na opa de veludo, e as mãos encarnadas como as de um carniceiro. Assomou a uma varanda dos paços, chamou pelos soldados, e, arremessando desprezivelmente à praça essas sanguinolentas postas de carne, ordenou enfastiado à escolta:<b> </b></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- Queimem</b> isso e atirem as cinzas ao tejo!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Lavou-se</b> numa bacia de prata de água as mãos, limpou-se a uma toalha de holanda, que um guarda-roupa, dobrando o joelho, lhe apresentou; e, voltando à mesa, concluiu serenamente o seu jantar, numa câmara cujos tectos e paredes daí a pouco eram vermelhados pelos clarões das altas fogueiras que, em baixo, no terreiro, rechinavam os corpos de Álvaro Gonçalves e Pêro Coelho.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Acocorados</b> a um canto, os músicos rufavam nos atabales.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><br /></span></p><p style="text-align: right;"><span style="font-size: medium;"><b>Antero de Figueiredo, <i>D. Pedro e D. Inês </i>(1913)</b></span></p><p style="text-align: right;"><span style="font-size: medium;"><b><br /></b></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><u>Nota: </u> A execução vingativas de dois dos algozes de Inês de Castro perdura no imaginário popular, acerca de um rei que ficou no imaginário como um homem excessivo. Conto de recreação, sem outra atitude que não a de encenar esse acerto de contas. Parece-me particularmente boa a forma como está caracterizada a destemperança insana do rei, fazendo-se eco dessa mesma memória colectiva.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgiX5XjzO9VsajICvS7XmQsi0VPNIZfsSMRAb2gB97IcpGD83GQcJfDaCCvXDK8Z9zofBu_omE1OzgRQoIHqSua3DHFJQscesrieFEv6zSWMQwqjVvoEghl9Jw9YLjK2Y_gTYTjbUfho7E/s2048/img671.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1285" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgiX5XjzO9VsajICvS7XmQsi0VPNIZfsSMRAb2gB97IcpGD83GQcJfDaCCvXDK8Z9zofBu_omE1OzgRQoIHqSua3DHFJQscesrieFEv6zSWMQwqjVvoEghl9Jw9YLjK2Y_gTYTjbUfho7E/w402-h640/img671.jpg" width="402" /></a></div><br /><span style="font-size: medium;"><br /></span><p></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-80690196115473277702021-03-23T13:11:00.000+00:002021-03-23T14:56:55.488+00:00#17 - CONTO DO NATAL (João de Araújo Correia, 1899-1985)<p style="text-align: justify;"><b></b></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><b><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjNOn7J6jnnhGCWvdD8lO9tDCOVX_rhT7qkOvVO5FIS31Mp-bVH0jJPfFcQ0-R8zBsw6dQcs6zjvE-NzPnzONQ6IvNMOgw_NPmB3naadmtTGgc6w8bzP_qT2qb0nnJYOWWofh2UKmm9Vk4/s215/Joao_Araujo_Correia.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="215" data-original-width="160" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjNOn7J6jnnhGCWvdD8lO9tDCOVX_rhT7qkOvVO5FIS31Mp-bVH0jJPfFcQ0-R8zBsw6dQcs6zjvE-NzPnzONQ6IvNMOgw_NPmB3naadmtTGgc6w8bzP_qT2qb0nnJYOWWofh2UKmm9Vk4/s16000/Joao_Araujo_Correia.png" /></a></b></div><b> </b><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><span><span style="font-family: times;"><b>Nesse</b> ano, o Menino-Jesus, que o padre deu a beijar no dia de Natal, na arruinada capela do</span><span style="font-family: inherit;"> lugar, foi um menino vivo, um menino de carne e osso. Eu conto... A D. Rita de Cásia, governanta do Comendador Clarimundo, andava pejada, como sucedia em cada Inverno. Mais do que isso: desde o meado de Dezembro que a boa cuvilheira andava para cada hora. Na véspera do Natal, à noite, cansada de enganar o mundo com o ventre cilhado por demais, caiu à cama com uma dor de cruzes. Mandou chamar a parteira e vamos a isto: deitou cá fora um rapagão loiro e rosado como quem o fizera -- por enquanto não se diz nada... Nasceu o menino quando o galo cantou pela primeira vez. A parteira, uma comadrona mais velha do que a sé de Braga, já sabia que tinha de embrulhar o menino bem embrulhado num xale e levá-lo para longe do povo -- para o enjeitar. Era o costume. Fizera isto, de malhoada com a governanta, aí umas dez ou doze vezes. O Comendador era rico mas avarento. Dera de uma assentada muito dinheiro aos pobres quando era novo, mas isso era só para ser Comendador. Nunca mais gastou cinco réis em caridades e até jurou a si mesmo nunca se casar para não ter encargos de família. Portanto, se a governanta gravidada, isso era lá com ela. bastardos de portas dentro é que não queria. De maneira nenhuma! Tanto mais, que ele sabia guardar decoros à parentela: uma vergônteas, disseminadas pela província, aqui e acolá, duma velha haste apodrecida -- o tronco dos Mongroivas. Essas vergônteas lisonjeavam-no como parente honrado desde a pele até o tutano dos ossos. Queriam-lhe todos muito e à porfia. Visitavam-no amiúde, embora ele se esquecesse sempre de lhes oferecer um cálice de vinho ou uma pinga de chá. Iam-se embasbacados, mas, daí a uma semana ou duas, voltavam restabelecidos da encavacadela. Podia muito com eles o cheiro do ouro, que o Comendador exalava. Era uma atracção... Na noite de Natal, não lhes digo nada: vinham todos, porque o Comendador, nessa noite, dava-lhes mesa franca. Havia quem dissesse que poupava dinheiro na roda do ano, para o gastar numa ceia, com primos e primas. Era um esbanjar de iguarias, que só visto! Depois, tudo aquilo regado de bons vinhos: malvasia, alvarelhão e muito vinho velho para abafar os doces. Na memorável consoada a que me reporto, enquanto a governanta gemia, num cabo da casa, com as dores do parto, a parentela do Comendador, com o freio bem tirado, caía em peso na sala de jantar. Quem animava os novos a comer eram as velhas, pois diziam, com muita convicção e muita experiência: na noite de Natal, nada faz mal. Enquanto a governanta, num</span></span><span style="font-family: inherit;"> cabo da casa gemia com as dores do parto, os Mongroivas comiam e bebiam com fome e sede de três dias. É claro que nunca suspeitavam da gravidez da governanta. Como suspeitariam do parto? Quando souberam que ela estava muito doente, romperam a chorar -- ternura que muito agradou ao primo Comendador. Ai! aquela governanta era uma santa! No fim da ceia, rezaram pela saúde dela um <i>Padre-Nosso </i> e uma <i>Ave-Maria</i>.</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><span><b>Quando</b> a parteira, com a criança embrulhada no xale, saiu de casa para a enjeitar, a noite estava escura como devia ser o mundo antes de haver luz. A velha, pata não cair, coseu-se com as paredes das casas. Sem medo nenhum, porque era animosa de seu natural e andava afeita àqueles errores nocturnos, procurou, com aquele embrulho ao colo, uma das quatro saídas do povoado. Em certo sítio, não teve outro remédio senão abandonar o corrimão das paredes para atravessar um largo. Então é que foram elas! Começou a caminhar às cegas. Enterrou os pés em lama. Perdeu as chinelas. Deixou-as ficar sepultadas no lodo. Sentiu aluir-se-lhe o chão num rego de água. Gritou. Lembrando-se porém da enorme responsabilidade da sua missão secreta, amarfanhou a boca da concha cadavérica da mão. Foi-se arrastando. Como porém houvesse perdido de todo a tramontana, era-lhe difícil, se não impossível, sair do largo. Resolveu alijar o pacote de carne recém nascida e fugir até encontrar de novo uma parede que lhe servisse de guia. Neste momento deu fé de uma lumieira baça que saía dum buraco e se alastrava na escuridão como nódoa de azeite num vestido preto. Era a lâmpada do altar mor da capelinha do povo -- ruína que voltava para o largo uma das faces negras. A parteira sentiu refrigerar-lhe a alma à vista dessa luz. Viu nela um aviso de Deus para meditar um momento nas contas que lhe havia de prestar quando morresse. Encarou em si própria e sentiu-se repelente. Já todos os cantos lhe cheiravam à campa. No entanto, era ainda sem pejo que aparava nas mãos encarquilhadas um menino caído do ventre de sua mãe para o expor, no limiar de qualquer porta, à mercê dos caprichos do tempo e da fortuna. Fazia isso pata ganhar dinheiro. Não podia ter amnistia celeste o acervo dos seus crimes. Que poderia tentar para que nosso senhor se condoesse dela? Naquela noite, em que Jesus nascia numas palhas, já com o perdão expresso nos lábios inocentes, que podia ela fazer para se mostrar arrependida de haver pecado tanto? Naquela hora, com aquele inocentinho ao colo, que boa acção poderia ela executar merecedora do reparo dum deus, que mal abria os olhos para abarcar num relance o mundo corrompido? Aproximou-se da capela, empurrou a carunchosa porta lateral, que dava para o largo, sumiu-se no templo, e depositou o menino sobre o degrau cimeiro dum altar, cujo tampo se abria todos os anos, pelo Natal, para mostrar às crianças atónitas e curiosas as maravilhas ingénuas do presépio.</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><span><b>-- Deixai</b> estar, que o menino este ano há-de ser de carne e osso! -- exclamou a velhinha, já um pouco jubilosa da sua graça e contentíssima por haver praticado uma acção, que lhe parecia boa. Deixai estar, que este ano o menino há-se ser de carne e osso...</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><span><b>Quando</b> a velhinha saiu da capela, já o céu se tinha esclarecido um tudo-nada. Tanto, que a pobre criatura encontrou as chinelas e atinou com o caminho que a levou à toca onde vivia. Felizmente, que não topou vivalma! Deitou-se e dormiu sossegada.</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><span><b>No</b> dia seguinte, pela manhã cedo, à hora da missa, rezada na capelinha vetusta pelo mais desbocado e caritativo padre que a freguesia tem tido, sucedeu que o celebrante, com o menino ao colo e lágrimas na face de oitenta anos, vocifereva:</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><span><b>-- Este</b> ano o Menino é de carne e osso. Beijai-o nos pezinhos, que já o fiz cristão. Quem sabe se algum de vós será o pai dele? Quem me dera apanhar aqui a cadela que o enjeitou!</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><span><b>Muito</b> descomposto, o padre subiu ao altar e aí pregou um lindo sermão. Esmaltou-o de obscenidades, mas como chorava e tremia, todo o auditório de fiéis chorou e tremeu com ele. Ainda não tinha acabado, quando o Comendador saiu do seu canto e avançou para o arco-cruzeiro. Virado para o sacerdote, disse:</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><span><b>-- Esse</b> menino é meu filho e a mãe é a minha governanta. Diante de Deus e dos homens, aqui prometo adoptar a criancinha e receber a mãe como legítima esposa.</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><span><b>Os</b> parentes do Comendador fugiram como se os enxotassem à pedrada. O povo levou em charola o Comendador. Deu muitos vivas. O recém nascido, a quem hoje chama o Menino-Jesus fez da suas no regaço de todas as senhoras. Deram-lhe tanto beijo, que o iam desfazendo. O padre chegou a injuriá-las pela maneira sôfrega como disputavam o inocentinho. Uma delas, mulher espirituosa -- ainda vive --, voltou-se para ele e replicou-lhe:</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><span><b>-- Vossa</b> Reverência, aos anos que conta e ao bem que tem feito, já estava no céu, se não fosse tão malcriado...</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit;"><span><u>Nota</u>: Extraído de <i>Contos Bárbaros</i> (1939) para uma antologia de Natal, sem indicação de organizador, Lisboa, Arcádia, 1978. <b>Divertida história aldeã de arrependimento, em que dois velhos, uma <i>curiosa </i> e um padre, surgem como instrumentos beatíficos da<i> Graça divina</i><span style="font-size: medium;">.</span></b></span></span></p><p style="text-align: right;"><span style="font-family: inherit; font-size: medium;"> </span></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-38059623362080623782021-03-09T09:04:00.002+00:002021-03-09T12:43:14.154+00:00#16 - A GRANDE SUBVERSÃO (Manuel Alegre, 1936)<p style="text-align: justify;"><br /></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiV0OYSj6ViTwoif6OhE1yDKFPu6I_g6_fmRXzGkre2kJDXUYZNqBv8Yx5ERk2HIDXyXP5naWiPXCpi3uGejTEWH5pYjzOXkYrAjvZt4Er7hQP-dFpc4VA0zCbRt88rZtZM4SD-21OFko4/s890/ManuelAlegre.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="785" data-original-width="890" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiV0OYSj6ViTwoif6OhE1yDKFPu6I_g6_fmRXzGkre2kJDXUYZNqBv8Yx5ERk2HIDXyXP5naWiPXCpi3uGejTEWH5pYjzOXkYrAjvZt4Er7hQP-dFpc4VA0zCbRt88rZtZM4SD-21OFko4/s320/ManuelAlegre.jpg" width="320" /></a></div><p style="text-align: justify;"> </p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Eram</b> terríveis as rotinas, quase um rito iniciático, uma sagração. Havia o dia de esfregar a casa, o dia de lavar a roupa, o dia de arear os metais, o dia de tomar banho. E também o dia de pôr flores aos mortos. Havia ainda o dia do remédio para as bichas e o dia do pente fino, à cata dos piolhos apanhados na escola.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Nada </b>mais contava senão o que estava determinado para ser o dia desse dia. As mulheres ficavam possessas de cada tarefa, como tangidas por uma demoníaca alucinação. Era uma coisa obscura, essencial, que desordenava e reordenava a casa, as horas, os hábitos, os próprios humores. Ninguém podia quebrar aquele ritmo, que girava, obsessivo, à volta da mãe. Os homens estavam de fora, mas ao mesmo tempo dentro. Tinham de resignar-se à ordem de batalha de cada dia.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>O</b> pai escapava-se, pelo menos tentava, ausentando-se para dentro de si, sentado na cadeia, alheio aos ruídos, até mesmo às perguntas. Era o seu modo de resistir à teia tecida pela aranha infernal da rotina. Sentado na cadeira, olhando para longe, procurava manter um espaço inacessível à invasão dos deveres que roíam, como toupeiras, as próprias fundações da casa. Não era fácil. Quando menos se esperava, as criadas começavam de repente a levantar os tapetes, a virar as cadeiras de pernas para o ar, a arredar os móveis, a bater furiosamente nos tapetes pendurados no quintal. O pai levantava-se, às vezes resignado, às vezes revoltado. Então saía, batia com a porta, sumia-se. E só voltava uns dias depois.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Eu </b>tinha medo daquelas operações de desarrumação e esfrega. Temia que o pai partisse e nunca mais voltasse. Mas ele acabava sempre por regressar. Durante uns dias, o frenesim afrouxava, havia uma espécie de trégua. Mas logo recomeçava. Eram assim os hábitos. As casas da vila estavam sujeitas a uma ordem preestabelecida. As pratas tinham de brilhar, e os cobres, os talheres, os vidros das janelas, os cristais. Era mais importante do que o pendor dos homens para a divagação e o silêncio.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>De</b> certo modo não havia lugar para o pai nem para mim. Havia lugar para a nossa presença na ordem incessante dos ritos, a horas certas. Não para as cavalgadas solitárias que cada um tinha necessidade de fazer sem ser interrompido pela tarefa do dia. Mesmo que fosse o dia de receber visitas, com chá e bolos. Não tínhamos direito à nossa desordem interior, éramos prisioneiros de um espaço constantemente invadido por obrigações cujo sentido não podíamos entender. Não era por mal, era assim.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Eu </b>tinha herdado do pai uma certa inclinação para a melancolia e para o outro lado das coisas. E talvez da mãe uma rebeldia que ela reprimia impondo-se e impondo-nos a ordem severa das rotinas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Por</b> isso comecei muito cedo a subversão interna: recusando o remédio das bichas, levantando as saias às criadas, jogando furiosamente o pião no chão recém-encerado, transformando os cobres e as pratas em alvos da espingarda de pressão de ar que o pai me tinha dado quando fiz a terceira classe, talvez com a secreta esperança de que eu começasse a disparar contra a ordem estabelecida dentro da casa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>E </b>vieram as grandes cenas, os castigos, as lágrimas da mãe incapaz de dominar aquela insurreição que lentamente subvertia tudo. Eu crescia contra os ritos. E os ritos começaram a ceder. Não que a mãe capitulasse; era, por assim dizer, um reequilíbrio de forças dentro da casa. Ou talvez o prenúncio duma nova era contra a modorra que reinava no país, nas casas, nos silêncios dos pais sentados nas suas cadeiras, desistentes, rendidos. É certo que se ouvia a BBC, à noite, depois do jantar. Recordo sobretudo uma frase que para sempre me alvoroçou: "O homem tinha os pés inchados, estava morto." Por vezes o pai comovia-se, levantava-se e dia: Viva a Inglaterra. E eu sentia um tambor dentro de mim. Mas ele voltava a sentar-se, e nada mais acontecia.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>As</b> horas, os hábitos e as rotinas nada podiam contra o ritmo novo que irrompia dentro de mim. Foi primeiro uma espécie de delírio, quase uma alucinação. Eu acordava aos berros a meio da noite e começava a cantar uma canção sem nexo. Outras vezes desatava aos saltos e às cambalhotas e só parava exausto a chorar, nos braços da mãe, aflita, derrotada, quase esquecida do seu pequeno império de obrigações quotidianas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Até</b> que veio aquela estranha e súbita sensação de morte iminente: um frio na nuca, um arrepio, o mundo a desvanecer-se e eu a cair para dentro de um buraco negro. Era preciso que alguém me agarrasse e me prendesse as mãos com força nas suas mãos. A mãe teve de passar dias e noites junto de mim, a mão dela segurando a minha, sob pena de eu me desprender e cair sabe-se lá para onde.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Talvez </b>eu tenha estado muito perto da morte. Nenhum médico o soube explicar. Nem sequer o espiritista que um dia me trouxeram, às escondidas do pai, já quase em desespero de causa. Talvez eu estivesse possesso de forças indomáveis. O certo é que as rotinas foram perdendo o seu domínio naquela casa. A mãe passou a ocupar-se mais de mim e menos dos seus titânicos deveres. O pai recuperou o espaço há muito perdido. Uma harmonia difícil, quase perigosa, subverteu os hábitos, as horas, os humores. Não direi que era a felicidade; era outro ritmo, a voz do sangue contra a ordem cega das coisas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Pouco</b> a pouco deixei de sentir aquele buraco enorme ao pé de mim. Estava de volta. Curiosamente, foi no fim da guerra. Talvez tenha sido coincidência, talvez não. Era um dia de Maio, sentia-se lá fora a festa, os foguetes, os risos. O pai tinha lágrimas nos olhos, ia à varanda e não se continha: Viva a Inglaterra. Agora com toda a força. E subitamente eu estava de volta.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Fiz</b> então uma festa à mãe, sorri e levantei-me. Um melro cantava no jardim. E eu sentia uma espécie de assobio por dentro. Era um ritmo desconhecido, palavras, imagens. Algo que cantava e me chamava sem eu saber porquê, para uma página aberta. Ou talvez lá para fora: para o Sul, para o Sul.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><u>Nota</u>: <b>Apesar de arrolado num livro de contos, estamos perante uma rememoração poética de episódios domésticos da infância. Um retrato de uma pequena aristocracia / burguesia provincial na primeira metade da década de 1940, com o marcado papel matriarcal intramuros, e o despontar de uma vocação poética anunciada por aquele <i>assobio por dentro</i>.</b></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b><i>O Homem do País Azul</i> (1989); 7.ª ed., Lisboa, 2009</b></span></p><p style="text-align: right;"><br /></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjtbtzfeVAS1XMI_pbPBOqMmqedWeFWyw3XAh6VKLpa_Rg5jNilgm4kN_Xf82EO_VIGTqU-XdiMo1VPYWBeeGc_sEqHEmYkP1xd37JerJBmKsidqBG2XpK21qReuCzIAAtc9vg_V7QxTo4/s2048/ManuelAlegre-OHomemDoPaisAzul.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1326" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjtbtzfeVAS1XMI_pbPBOqMmqedWeFWyw3XAh6VKLpa_Rg5jNilgm4kN_Xf82EO_VIGTqU-XdiMo1VPYWBeeGc_sEqHEmYkP1xd37JerJBmKsidqBG2XpK21qReuCzIAAtc9vg_V7QxTo4/w414-h640/ManuelAlegre-OHomemDoPaisAzul.jpg" width="414" /></a></div><br /><span style="font-size: medium;"><br /></span><p></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-79736701113631760092021-02-03T08:11:00.003+00:002021-02-24T12:44:54.509+00:00#15 - UM PEQUENO ROMANCE (Conde de Arnoso, 1855-1911)<p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b></b></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-size: medium;"><b><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgCbsKv7KE2xzIkIuMYdCMdy4d_Z2PZqqgGyebwLvXiF1VNkYAxAf9Vh7qljA5WmRBxTx27ScMUr9CcR9re3tShLE3D-aoStlIHRXWTlyM5fOVnkJUsdAE-f0JM0Y2Lf2a83wAYmsz5GDw/s311/CondedeArnoso.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="311" data-original-width="231" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgCbsKv7KE2xzIkIuMYdCMdy4d_Z2PZqqgGyebwLvXiF1VNkYAxAf9Vh7qljA5WmRBxTx27ScMUr9CcR9re3tShLE3D-aoStlIHRXWTlyM5fOVnkJUsdAE-f0JM0Y2Lf2a83wAYmsz5GDw/s0/CondedeArnoso.jpg" /></a></b></span></div><span style="font-size: medium;"><b><br /> </b></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><span style="text-align: justify;"><b>«A</b> quem logo de manhã cedo em Vizela vai para o banho, não pode passar despercebida uma rapariga dos seus dezoito anos mal contados, que ali adiante à esquina da botica, sentada no granito do passeio, vende chapéus de palha, que ela própria, num labor incessante continuamente fabrica. Nesse pequeno e animado recanto, onde outras mulheres vendem em redondos açafates saborosas donas Joaquinas -- afamadas pêras do Douro -- e em cestos, forrados de brancas toalhas de grosso linho, alvo pão de trigo, é a delicada figura da rapariguita dos chapéus, que, com o seu ar de uma melancolia estranha, destaca pelo contraste do seu calmo sossego com a grita azafamada das vendedeiras em redor.</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><span style="text-align: justify;"><b>Com </b>o molho das palhas de centeio humedecidas, entalado debaixo do braço esquerdo, vai compondo sem desviar os olhos do trabalho, a comprida trança de onze pernas, que achatada entre os dedos, se lhe vai enrolando no braço, à medida que vai crescendo. Enquadra-lhe a perfeita oval do rosto um lenço de chita amarelo e desbotado; os cabelos louros e crespos, acendem, com os seus fulvos tons de oiro vivo, uns restos de frescura na passada cor do lenço; é pálida, de uma palidez doentia, que nos faz pensar na morte escura; os seus olhos verdes e claros, brilham frouxamente do fundo das pisadas olheiras que os cavam; o colete minhoto de cotim, sem barbas, aperta-lhe carinhosamente o busto fino, pondo em evidência, sob a camisa de estopa, o tímido relevo gracioso dos seios virginais.</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><span style="text-align: justify;"><b>Junto</b> a si, sobre o pequeno e tosco banco de madeira, tem a alta ruma dos chapéus já feitos.</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><span style="text-align: justify;"><b>Se</b> um freguês se acerca dela, ergue então os lindos olhos pisados, e só interrompe a sua trança para receber na palma da mão os magros cobres por que vende os seus chapéus.</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><span style="text-align: justify;"><b>À</b> tarde, quando esse recanto mais se anima e as doceiras chegam com os tabuleiros de rebuçados, aparece o dentista da aldeia, que é ao mesmo tempo pedicuro,, com o seu rosário de dentes passado a tiracolo, abancando também ao lado, dispondo sobre uma velha mesa de cozinha uma cadeira de pau enfraldada em paninho vermelho, sobre que destacam, enfileirados sobre um quadrado de cartão, nojentos calos fenomenais, extirpados a gretados pés de lavradores em vez da rapariga é então a mãe, envelhecida pelos rudes trabalhos do campo, que ocupa o seu lugar.</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><span style="text-align: justify;"><b>A </b>filha foge talvez ao reboliço da estrada, essa larga fita desigualmente bordada de prédios abrasileirados, onde de preferência passeia num vai-vem continuado a chusma de banhistas, pobres e tocadores.</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><span style="text-align: justify;"><b>Mendigos,</b> aleijados e andrajosos, arrastam-se pedindo esmola numa cantilena arrepiante; cegos com a cabeça erguida, à busca da luz que de todo lhes fugiu, passam guiados pelas mãos de míseras crianças; a mulher da harpa e o homem da rabeca, cegas de viola, galegas de pandeiro com as curtas tranças caídas atadas na ponta, levam atrás de si ondas de basbaques, que pasmam e fazem roda logo que a desafinada música principia; às portas dos hotéis organizam-se me grande grita as alegres burricadas; raras carruagens de luxo, com os cocheiros abafados em fartos sobretudos brancos por um calor de rachar, passeiam banhistas venturosos, que há vinte anos assombram a província com o luxo das mesmas equipagens; crianças lindas, alegres e felizes, abrigadas por grandes chapéus de palha, correm na frente das mamãs ou das criadas; outras, enfezadas e raquíticas e já tolhidas do reumático, pobres seres que entram na vida pela larga porta do sofrimento e da dor, por onde todos nós, velhos, um dia, teremos de sair, vão nos carros de doentes abafadas, com o seu arzinho triste de uma melancolia profunda; lavradores e lavradeiras que recolhem do banho da tarde caminham lentamente, agasalhados nos lençóis de banho e nas saias de flanela escura que põem à cabeça; um doido com a sua cabeça de apóstolo de retábulo de igreja, inofensivo, apesar do forte cacete com que bate no chão as longas e lentas passadas, é seguido pelo rapazio, que às furtadelas lhe puxa pelas abas do casaco esfrangalhado; brasileirinhas de olhar lânguido, vestidas ainda na rua do Ouvidor, calquinham com os seus sapatos amarelos a poeira da estrada, amparadas a finos varapaus ferrados; os papás, ventrudos e com ricos brilhantes no peitilho da camisa, vão deitando para o ar fumaradas de charuto e de importância, cruzando, desdenhosos, garotos calçados em chinelas, filhos de pequenos lavradores remediados, que daqui a vinte anos, passearão também por este Minho risonho, -- se a febre amarela os não levar a breca -- as suas belas apólices e a rica comenda de Cristo!</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><span style="text-align: justify;"><b>E</b> é positivamente este confuso rumor de romaria que a rapariguita dos chapéus evita fugindo para longe. Para onde? Quantas vezes, passando junto ao cemitério, que em declive vem morrer na estrada, alegre e risonho, com os seus muros caiados, ou então da ponte, olhando o fundo vale assombreado, fizemos a nós mesmo esta pergunta?</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><span style="text-align: justify;"><b>Ontem</b> à tarde, descendo ao banho mourisco, e de lá seguindo sempre o rio, à sombra de belas árvores -- carvalhos, que as vides abraçam; esguios freixos enramilhetados no alto; amieiros finamente recostados; tristes salgueiros de folha miudinha; raros castanheiros de onde agora, ao menor sopro da aragem, caem as candeias como grandes lágrimas douradas -- pisando sobre a relva fresca mimosas flores silvestres e escutando enleados a festiva música dos pássaros, caminhávamos sonhando, quando, de repente, do outro lado, um canto triste, como o de uma alma penada, se elevou vibrante, fazendo calar nos ramos as tímidas toutinegras e na nossa alma esvair-se como fumo o inexplicável, o indefinível enlevo, que a nossa fantasia ia acalentando. Sentada sobre umas pedras, mais pálida do que nunca, e compondo a interminável trança, ere ela que soltava em notas cristalinas os fundos, magoados, gemidos do seu dilacerado coração, não despegando os olhos da corrente, que corria mansa e límpida, beijando junto às margens as verdes frondes dos fetos.</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><span style="text-align: justify;"><b>Quase</b> ao mesmo tempo, de entre os milhares da margem onde estávamos, a voz roufenha de um homem gritou imperativamente:</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>--Eh!</b> rapariga, basta hoje da maluqueira do rio; é saltar à bouça e recolher o gado, que vão sendo horas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>A</b> voz da rapariga estrangulou-se-lhe na garganta; levantou-se, e, sempre fazendo a sua trança foi subindo vagarosamente a encosta. As toutinegras recomeçaram nos ramos, contentes, a cantar. O homem, um pouco adiante, seguia o mesmo trilho que eu ia pisando. Apressei o passo, chegámos juntos ao portelo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>--Louvado</b> seja Nosso Senhor Jesus Cristo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- Para</b> sempre louvado, -- respondi; e logo, sem mais rodeios, perguntei-lhe se a moça era sua criada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- É </b>minha filha e tem sido os meus pecados, senhor.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>--Os</b> seus pecados?!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Então,</b> trocando os <i>vv </i>pelos <i>bb</i>, explicou-se na sua linguagem pitoresca, que, haveria uns bons dez anos, pelo inverno, guardando ela os bois com um rapazote da mesma idade, que era seu criado, ali por aquele mesmo sítio, o rapaz caíra ao rio e fora encontrado morto perto do açude da azenha. Desde aquele dia, a rapariga, sempre que podia, fugia de casa, e, a modos apatetada, ficava horas inteiras sentada naquelas pedras a olhar para o rio.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>-- Por</b> mais bordoada que lhe dei, não me foi possível arrancar-lhe essa manha do corpo: aquela, senhor, vai de palmito à cova.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Estávamos</b> perto das poldras, os bois bebiam sossegadamente, levantando de vez em quando as bondosas cabeças para o ar parado e calmo; ela, a meio do rio sobre uma pedra, com o molhos das palhas de centeio humedecidas entalado debaixo do braço esquerdo, compunha ainda, sem desviar os olhos da corrente, a comprida trança de onze pernas, que achatada entre os dedos, se lhe enrolava no braço à medida que crescia!...</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><u>Comentário</u>: <b>Uma jovem figura como que saída de um quadro delicado de Albert Anker, tão agradável, mas ao mesmo tempo perturbadora, numa oscilação que caracteriza o conto de Arnoso: o bulício da feira e do do caminho para os banhos estivais, com visível comprazimento do narrador que enumera e enumera, e a figura que viremos a saber trágica da pequena vendedora de chapéus.</b></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><b>Bernardo de Pindela, futuro Conde Arnoso (1855-1911), um dos Vencidos da Vida e amigo dilecto de Eça de Queirós, secretário particular do rei D. Carlos. Livro publicado a meias com o cunhado, o Conde de Sabugosa.</b></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhk34rmFiv0EG4Lu-4TYehR8olEuH_Vays5tg4oZvD-RFWFNHMOIPZn_umISbNhqVETUZmHLGleDvxcEq1ojfP5wmwtAqv6UhxO3cQmYtenmhC53_UQJjVtHL0qaF2sLh9Fuxlc6j-TkV0/s2048/CondeDeSabugosa-B.Depindela-Debra%25C3%25A7oDado.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1369" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhk34rmFiv0EG4Lu-4TYehR8olEuH_Vays5tg4oZvD-RFWFNHMOIPZn_umISbNhqVETUZmHLGleDvxcEq1ojfP5wmwtAqv6UhxO3cQmYtenmhC53_UQJjVtHL0qaF2sLh9Fuxlc6j-TkV0/w428-h640/CondeDeSabugosa-B.Depindela-Debra%25C3%25A7oDado.jpg" width="428" /></a></div><br /><p style="text-align: right;"><br /></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-73243674213894273182019-04-01T13:58:00.006+01:002021-02-27T19:32:30.949+00:00#14 - DIÁLOGO DOS BEM CASADOS (Henrique Abranches, 1932-2004)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjbW218_HzVltIAhNK0aMQn2eakLgLcD4dBwgvqPMmw1zuMgT3o_0C-n2biRc8UkJ_1K5X5nVesgfAMe7HuS0FQ_1GyAmrxj1Vm5TNgN0KaohJ1ruNkgGY31UuhTfYr4g5CFtF-C5IZPas/s1600/HenriqueAbranches.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="200" data-original-width="140" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjbW218_HzVltIAhNK0aMQn2eakLgLcD4dBwgvqPMmw1zuMgT3o_0C-n2biRc8UkJ_1K5X5nVesgfAMe7HuS0FQ_1GyAmrxj1Vm5TNgN0KaohJ1ruNkgGY31UuhTfYr4g5CFtF-C5IZPas/s200/HenriqueAbranches.jpg" width="140" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>-- Já</b> apitou, Germano?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>-- Não, </b>ainda. Bom, Luísa, fala tudo já. O comboio não falta muito vai embora.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>-- Sim,</b> Germano, mas fala você. Que mais é?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>-- É...</b> trata bem o nosso miúdo, ouviu?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>-- Sim, </b>eu trato dele,<b> </b>eu não esquece menino, não esquece com certeza. O miúdo é nosso filho, não é? Por isso eu trato bem, não precisa recomendar. Vá, Dominguinho, fala adeus no pai, wé!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>-- Olá </b>Domingo, wé?<b> </b>Faz boa viagem e toma o juízo heim? A mãe to dá quando você faz asneira. Bom...</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>-- Ah! </b>Germano... agora eu vai embora e você fica!...<br />
<b>-- Pois </b>é, eu vou ficar, mas não te importa, Luísa. Depois eu vai também.<br />
<b>-- Vai</b> sim! Não demora não. É uma pena assim...<br />
<b>-- Está</b> bem. Bom, Luísa, não esquece falar no meu pai de pagar no sapateiro, os meus sapatos que ficou lá no ano passado. Olha aqui: assim eu não pode andar, tá a ver? Você sabe, não é? Não esqueça falar isso, não?<br />
<b>-- Está</b> bem, Germano, fica descansadinho que eu não esquece. Mas você não demora muito aqui, ouviste? Olha só: o Domingo já está a chorar com a mágoa no coração. «Lembalaça yomuxima». Coitadinho...<br />
<strong>-- Coitadinho...</strong> diz nele que não chora assim, que o pai vai logo... sim, vai qualquer dia, quando Deus manda.<br />
<strong>-- Deixa </strong>chorar o menino. Chorar é bom... éwé! O comboio vai embora, a máquina já bufou!<br />
<strong>-- Não</strong> vai nada, Luísa! Só bufou, mais nada. Mas fala tudo depressa, ouviu? Tá aí vai embora.<br />
<strong>-- Pois </strong>é. Olha, Germano: todos os dias vai visitar a mana Teresa, está bem? Coitadinha, está tão doentinha.<br />
<b>-- Está</b> bem, senhora. É só?<br />
<strong>-- Sim.</strong> Trata do miúdo dela que não tem mais ninguém no mundo. Manda doce para ele. Todos os dias não, que é muito caro, mas todas as semana não faz mal. Cada mês leva também assim uma coisa qualquer, umas peúga, ou uma coisa assim. Coitadinha a mana Teresa... ouviu Germano?<br />
<strong>-- Ouvi.</strong> Fico carregado disso, descansa. Eu nunca esquece a família. Olha... Toto wé...<br />
<b>-- Hi! </b>Germano! Germano wé! Ai meu Germano...<br />
<strong>-- Oh!</strong> Luísa...<br />
<strong>-- Toto</strong> wé! Germano!<br />
<strong>-- Suntya!</strong> Foi aquele gajo, caramba! Foi ele que me empurrou. Está muita gerente hoje na Estação. Tanta gente assim nunca vi! Toto!...<br />
<strong>-- É</strong> mesmo. Tanto barulho, a gente tem que gritar. Eu já pensei que tu vai e não vem falar comigo. Olha, Germano, afinal eu ainda quer falar uma coisa a você...<br />
<strong>-- Fala então,</strong><b> </b>já falta pouco o comboio vai mesmo.<br />
<strong>-- Bom.</strong> Você vai prometer uma coisa a mim, está bem?<br />
<b>-- Eu </b>ainda não sei... então como é?<br />
<strong>-- Mas</strong> promete só primeiro, depois eu é que falo.<br />
<b>-- Não </b>pode, Luísa, um homem não pode prometer assim à toa.<br />
<b>-- Ah...</b> anda lá, promete assim belamente. É por causa do Dominguinho.<br />
<strong>-- Pronto,</strong> mulher, está bem.<br />
<b>-- Já </b>prometeu?<br />
<strong>-- Então</strong> não ouviste?<br />
<strong>-- Ah! </strong>Sim senhor. Sabe o que é? Bom, você promete não andar com as outras gaja, essas «muiungueira» da Kipata, ouviu?<br />
<strong>-- Oh! </strong>Caramba! Deixa lá isso agora Luísa! Então quando está quase para ir embora começa a chatiar com essas manias, não é?<br />
<strong>-- Promete,</strong> meu Germaninho...<br />
<b>-- Qual</b> quê! Não chatia, home! muda lá a conversa!<br />
<strong>-- ...</strong></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<strong><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">-- ...</span></strong></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>-- Gosto</b> quando você está a rir assim para mim. Porque não tira o fotografia? Põe a gravata e o casaco, tira a fotografia assim a rir e manda para Luanda. Assim a rir para mim.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>-- Pois</b> é. E no fim quem paga é Deus, não é?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>-- Nada, </b>homem, é só que eu gosto.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<strong><span style="font-family: georgia; font-size: medium;">-- Gosta?</span></strong></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><strong>-- Eh!... </strong>Meu Germano fica hoje... eu vou embora no Luanda e você fica... meu coração está a chorar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><strong>-- Não</strong> chora mais, Luísa. Não adianta. Olha tem o meu lenço e limpa essa carinha, filha. Olha, canta só, canta aquela cantiga da nossa terra: omuxima wé... omuxima wé pikena...</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>-- Ai, </b>Germano. Não fala essa cantiga senão eu não aguenta. Ai o meu homem coitadinho, vai ficar aqui sòzinho...</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>-- Se </b>não gosta daquela cantiga canta a nossa juventude, o «juventude de Catete»: «Doutolo Neto wé, vondali yatumo...»</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>-- Deixa</b> as cantiga, Germano.<b> </b>Eu só quero chorar. Você vai ficar aqui sòzinho...</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>-- Paciência, </b>Luísa, depois eu também vou. Vou no trás de você, faz de conta que vou a porseguir outra vez, como antes da gente manter.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>Por</b> acaso! Mas falta muito tempo não é?</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><strong>-- Ah! </strong>Luísa, você também anda bem, ahn, tá a ouvir? Anda direito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><strong>-- Já </strong>sabe, Germano, não precisa dizer isso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><strong>-- Quando sai toma cuidado</strong><b> </b>com os vadios. Bom. Eh! Agora é que pitou!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><strong>-- Wé! </strong>Vai embora já! A gente já vai! Eh! Germano, já tá a começar!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>-- Adeus, </b>Luísa! Adeus, Luísa! Boa viagem!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><b>-- Adeus, </b>Germano! Não corre assi, vai to cansar! Adeus wé! Adeus...</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><strong>-- Adeus, </strong>Luísa... Oh! Adeus, Luìsinha. Toma conta no miúdo... Luìsinha adeus, té qualquer dia... adeus ADEUS toto é!...</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: right;">
<span style="font-size: x-small;">Luanda, em S. Paulo, Agosto de 61</span><br />
<br />
<br />
<strong><em><u>Diálogo</u> (</em>1962)</strong><br />
</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: right;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Nota - <strong>2.ª ed., Lisboa, UCCLA, 2015, pp. 19-22. Um delicioso conto dialogado, como todo os que compõem o livro, redigido com inventiva e mestria.</strong></div>
<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjlMMvPH6-NUMDqAXORU5eZ43bqHtBTdMAaArVQBQGVBP-YP5ZsVhM1vosdgIsSakwdGhGIdA5-xJlmKarMzujsukHam3yo0q1DDYQOecwTCT3z0YLPIH8rVJ-3wgBGGzVpHm2ReK2ofeo/s2048/HenriqueAbranches-Dialogo.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1416" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjlMMvPH6-NUMDqAXORU5eZ43bqHtBTdMAaArVQBQGVBP-YP5ZsVhM1vosdgIsSakwdGhGIdA5-xJlmKarMzujsukHam3yo0q1DDYQOecwTCT3z0YLPIH8rVJ-3wgBGGzVpHm2ReK2ofeo/w442-h640/HenriqueAbranches-Dialogo.jpg" width="442" /></a></div><br /> <p></p>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-56744018715441829282019-03-05T17:24:00.006+00:002021-03-15T01:04:52.922+00:00#13 - DOS PERIGOS DO RISO (José Eduardo Agualusa, 1960)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhf0LUQ5TFwe1k8rn6Jyb3tWHbNrvbu54Ht_1aekAVGiU6bxR3tu2u_WABThghbmsp_AFnd_7yRArleyuxxMg_iFVeUfx-Ku0R0Lsottp_wKZJl-P3nE0D6wO7j1AljcHcfzUnqxJcYEA4/s1600/JoseEduardoAgualusa.png" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="853" data-original-width="1280" height="133" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhf0LUQ5TFwe1k8rn6Jyb3tWHbNrvbu54Ht_1aekAVGiU6bxR3tu2u_WABThghbmsp_AFnd_7yRArleyuxxMg_iFVeUfx-Ku0R0Lsottp_wKZJl-P3nE0D6wO7j1AljcHcfzUnqxJcYEA4/s200/JoseEduardoAgualusa.png" width="200" /></a></div>
<div align="justify">
<span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><strong>Só </strong>quando parámos o jipe<b> </b>é que os vi. Estavam ali, à beira da estrada, meio escondidos pelo fragor do crepúsculo -- o velho e os seus lagartos. Eram lagartos enormes e tinham o pescoço enrugado como o do velho e os mesmos olhos miúdos e misteriosos. Ele reparou no meu interesse e disse o preço:</span></div>
<div align="justify">
<span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><strong>-- Cinco </strong>milhões, paizinho. Cada um.</span></div>
<div align="justify">
<span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><strong>Pareceu-me </strong>um preço justo. Valia a pena discutir:</span></div>
<div align="justify">
<span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><strong>-- Cinco </strong>milhões?! Por cinco milhões só se eles falassem...<br />
<strong>O</strong> velho olhou-me muito sério:<br />
<b>-- Falar </b>falam pouco, sim, meu pai. Mas riem muito.<br />
<strong>Riam, </strong>os lagartos?! Riam de quê? O velho encolheu os ombros. Ele não sabia. Riam à toa, como os malucos, riam uns com os outros enquanto tomavam sol. Achei que só por causa daquela resposta o velho merecia o dinheiro.<br />
<strong>Dei-lhe</strong> cinco notas, que ele alisou cuidadosamente antes de as guardar no bolso. Depois entregou-me o maior dos lagartos:<br />
<strong>-- Chama-se</strong> Leopoldino, este<strong>,</strong> e é o mais espertíssimo.<br />
<strong>Quis </strong>saber o que ele comia. O velho explicou-me que o bicho sabia tratar de si. Alimentava-se de moscas, baratas, mosquitos, mantinha a casa livre de insectos. Tentei brincar:<br />
<strong>-- E </strong>além disso podemos contar-lhe anedotas, não é?<br />
<strong>O velho não</strong><b> me respondeu. </b>Debruçou-se sobre os lagartos e disse-lhes qualquer coisa. Pareceu-me que falava uma língua trazida de outro mundo. Falava uma brisa, um sopro, um rumorzinho vegetal e húmido. Entrei no jipe e fiquei a vê-lo desaparecer, uma sombra dentro da noite escura, com a sensação de que era ele que tinha feito troça de mim.<br />
<b>Porém,</b> quando estávamos quase a chegar ao Sumbe, o lagarto começou a rir. Sei que parece estranho, mas é a pura verdade: Leopoldino ria. Não ria exactamente como uma pessoa, claro, ria como uma pessoa semelhante a um lagarto, mas ria. Eram gargalhadas secas, cínicas, que estalavam dentro do jipe de uma forma vagamente assustadora. Eu ouvi-o e não tive vontade de rir. O meu amigo, que conduzia o jipe, ficou ainda mais inquieto:<br />
<b>-- Essa </b>besta está-se a rir de quê?<br />
<b>Encolhi </b>os ombros (como fizera o velho). E eu sabia? Talvez ele fosse de rir à toa, como os malucos. Disse-lhe que os lagartos daquela espécie comunicam uns com os outros, às gargalhadas, enquanto tomam sol. O meu amigo, no entanto, tinha outra opinião:<br />
<b>-- Não!</b> -- É óbvio que está a rir-se de nós!...<br />
<strong>Aquela</strong> suposição instalou a desconfiança dentro do jipe. Abri a caixa de sapatos onde guardara Leopoldino e coloquei-o à nossa frente no tablier. Os olhos dele eram muito antigos. Todo ele era muito antigo Observámo-nos os três em silêncio. Leopoldino tinha um ar desafiador, talvez um pouco arrogante, mas não descobri naqueles olhos o mínimo lampejo de ironia. Tentei tranquilizar o meu amigo:<br />
<strong>-- Os</strong> papagaios riem, até falam, mas o riso deles, ou aquilo que dizem, não tem significado nenhum. Ora os répteis são parentes das aves, porque é que não podem existir lagartos capazes de imitar o riso dos homens?<br />
<b>O</b> meu amigo começava a ficar nervoso:<br />
<strong>-- Não </strong>me lixes! Sei muito bem quando é que um lagarto se está a rir de mim...<br />
<b>Colocada</b> a questão daquela maneira já era um assunto pessoal. Uma gargalhada é muitas vezes pior do que o pior insulto. Ainda por cima o riso de Leopoldino deixava campo aberto a todas as especulações: podia estar a rir-se da estupidez de dois sujeitos que compram um lagarto, na estrada Luanda-Sumbe, por cinco milhões de kwanzas; ou talvez soubesse alguma coisa (sobre nós) que seria preferível que ninguém soubesse (nem sequer a nossa consciência). Disse isto apenas para fazer conversa, mas o meu pobre amigo levou-me a sério:<br />
<b>-- Deve </b>ser por causa daquilo com a Ana -- murmurou sombriamente -- o maldito bicho sabe coisas de mais.<br />
<b>Eu </b>ignorava o que é que tinha acontecido entre ele e a Ana; nem sequer sabia quem era a Ana, mas achei melhor ficar calado. Devia ter sido alguma coisa de um ridículo estupendo. Se ele me contasse talvez eu não fosse capaz de conter o riso. E se eu me risse, naquela altura, isso seria o fim da nossa amizade.<br />
<b>-- O</b> pior<b> </b>ainda não te disse -- confessei --, a acreditar no velho, ele também é capaz de falar.</span></div>
<div align="justify">
<span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><span><b>-- Ele </b>fala, o animal fala?! Não, isso já é demais!...<br />
<b>Encostou </b>o jipe na berma da estrada, mantendo os faróis acesos, e saltou para o asfalto. Na mão direita segurava uma pistola.<br />
<b>-- Vou </b>executar esse muadiê!...<br />
<b>Era </b>a primeira vez que o via com uma arma. Saí do jipe em sobressalto:<br />
<b>-- É </b>claro que não vais. O lagarto é meu.<br />
<b>Ele </b>olhou para mim e percebi que não estava a brincar. O meu amigo tinha passado pela guerra. Dois anos no Cuíto Cuanavale.<br />
<b>-- O </b>lagarto é meu -- disse-lhe --, deixa-me ser eu a tratar disso.<br />
<b>Tirei-lhe </b>a pistola da mão, agarrei na caixa de sapatos onde estava Leopoldino e afastei-me alguns metros para o interior do mato. Os faróis do jipe iluminavam o capim seco, os altos cactos, o largo contorno de um embondeiro. Na noite imensa, límpida estrelada, só se escutava o cantar rouco de um grilo. Pousei a caixa no chão, apontei para ela e disparei três tiros. Quando o eco do último disparo se dispersou fez-se um fantástico silêncio. E então, subitamente, uma rajada de metralhadora, à minha esquerda, alvoroçou a noite. Fiquei um instante transido de pavor e depois voltei-me na direcção do jipe e comecei a correr. Atrás de mim, sobrepondo-se ao fragor do tiroteio, ouvi distintamente a gargalhada seca de Leopoldino. O meu amigo já estava ao volante:<br />
<b>-- Despacha-te</b> muadiê, pouca sorte, parece que começaste uma guerra.<br />
<b>Enquanto </b>mergulhávamos velozmente na noite, de luzes apagadas, ele voltou-se para mim:<br />
<b>-- Mataste</b> o bicho?<br />
<b>Respondi</b> com um grunhido. O que eu queria era sair dali.<br />
<b>-- Tinha </b>de ser -- disse o meu amigo, e o sorriso dele brilhou na escuridão. -- O tipo sabia de mais!...</span><br />
<br />
</span><div style="text-align: right;">
<span style="font-family: inherit;"><i><u>Fronteiras Perdidas</u> </i>(1999)</span></div>
</div>
<div style="text-align: right;">
<span style="font-family: inherit;"><br />
</span><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit;">
Nota - <b>Uma obra-prima de humor e absurdo.</b></span></div>
</div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-79786340964724800712019-02-18T13:57:00.004+00:002021-02-24T12:22:17.939+00:00#12 - AGADE E NIMUR (Mário de Carvalho, 1944)<div style="text-align: justify;">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgdcZ4SbVmnb6Jnd0UvDL76mhnUHr-cyCAgysyoOi97UtvPvw6eIYB9H120AOVj3VJtvQ7P_tBb10OUr9WXKaqE02RM3ahgYTWOrxMP6-KMyvP9cUHP2ElkclKJazNBEhr-U-Q68xkmMYw/s1600/MarioDeCarvalho.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="271" data-original-width="186" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgdcZ4SbVmnb6Jnd0UvDL76mhnUHr-cyCAgysyoOi97UtvPvw6eIYB9H120AOVj3VJtvQ7P_tBb10OUr9WXKaqE02RM3ahgYTWOrxMP6-KMyvP9cUHP2ElkclKJazNBEhr-U-Q68xkmMYw/s200/MarioDeCarvalho.jpg" width="137" /></a></div>
<span style="font-family: courier; font-size: medium;"><b>Havia </b>em Agade<b> </b>uma porta imemorial e no frontão tinha escrito: «Porta em frente da qual se não colhe o trigo.»<br />
<b>Veio o rei </b>e mandou cortar o trigo em frente da porta.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: courier; font-size: medium;"><b>Em </b>Agade havia um templo velho, repleto de oferendas. O rei profanou o santuário e tolheu ao templo as oferendas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: courier; font-size: medium;"><strong>Corria </strong>em Agade uma rua estreita, por onde, há séculos, era vedado passar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: courier; font-size: medium;"><strong>Transitou-a </strong>o rei com seu séquito, um dia, e outro, e outro, queimando perfumes.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: courier; font-size: medium;"><strong>Os</strong> deuses curam que os homens não rompam proibições, ainda que reis sejam. De modo que qualquer obscuro deus se viu movido a intervir.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: courier; font-size: medium;"><strong>Por </strong>isso, os povos da montanha, em suas peles de cabra, pegaram aljavas e arcos e seus arremessões e fundas, e vieram-se a Agade, em espessas coortes.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: courier; font-size: medium;"><strong>Na porta inscrita</strong><b> </b>foi exibida a cabeça e membros rotos do rei. No templo se restauraram os ídolos de antanho. A antiga rua embargada se mostrou coalhada de muito sangue.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: courier; font-size: medium;"><strong>Das</strong> gentes de Agade só um escriba restou, e verteu no barro uma «Lamentação sobre a cidade de Agade». </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: courier; font-size: medium;"><b>Foi-se </b>logo o<b> </b>escriba à cidade vizinha de Nimur, e sendo aí o rei falecido o fizeram rei, que era bom espelho de sageza.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: courier; font-size: medium;"><strong>Havia em Nimur</strong><b> </b>um portão chapeado que, diziam, dava para a sétima esfera, e por onde nunca ninguém tinha entrado. O rei forçou o portão, no estrondo de um aríete, e mandou fabricar mil longas lanças, de duras, aguçadas pontas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: courier; font-size: medium;"><strong>Havia</strong> em Nimur uma fonte de que era proibido beber. Veio o rei e bebeu por ela, ordenou que todos os da cidade bebessem com ele, e mandou que lhe fabricassem mil arcos e suas flechas e aljavas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: courier; font-size: medium;"><b>Atravessava</b> Nimur uma ponte velha, fechada de correntes, por onde ninguém ousava passar. Passeou-se o rei por ela durante todo um dia, desfeitas as correntes, e mandou edificar, e mandou edificar logo duas altas muralhas e seis torres de cantaria talhada nas pedreiras longes do Oriente.<br />
<b>Das</b> serranias vieram<b> </b> então pastores em fortes mesnadas de guerra. Derribaram uma muralha e outra, mas quedaram-se ante a terceira, atravessados de lanças, farpeados de setas.<br />
<b>E </b>voltaram vencidos a seus caminhos de montanha.<br />
<strong>Um</strong> qualquer ignoto deus tombou desamparado, desfez-se de encontro às areias, frente a Nimur. Seu diadema de filigrana diluiu-se em finíssima poeira dourada.<br />
<strong>Quem </strong>quer que passe os limites tem de antever as altas vindictas e prover o seu resguardo. Mas por cada limite franqueado há um deus que se despenha lá de cima.<br />
<strong>Esta </strong>a lição aprendida e revelada pelo escriba feito rei de Nimur.<br />
<b>Aflora </b>ela nos «Mil louvores à glória de Nimur», redigidos no barro por todos os escribas da cidade.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: right;">
<br /></div>
<div style="text-align: right;">
<b><em><u>Contos da Sétima Esfera</u> </em>(1981)</b></div>
<div style="text-align: right;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;"><b>
Nota - «por cada limite franqueado há um deus que se despenha». Ser um escriba o agente, é preciso notar.</b></div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-34580974024433640612017-09-18T00:42:00.008+01:002021-02-24T12:21:40.867+00:00#11 - O PRESÉPIO (D. João da Câmara, 1852-1908)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhxt63W8GFAft4zCtbP8nIgAI24eQkKeoe28mmCOwaBOG70vthbgFK6ppP6LJrQWKsCNSxXl15IDnPlUHPIHe2ZN1V8oyX1o4dUFvDV9Oy1b3RimCxFRicnGRvEISrEx5Ygf5tUv53xcKE/s1600/D.JoaoDaCamara.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="388" data-original-width="374" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhxt63W8GFAft4zCtbP8nIgAI24eQkKeoe28mmCOwaBOG70vthbgFK6ppP6LJrQWKsCNSxXl15IDnPlUHPIHe2ZN1V8oyX1o4dUFvDV9Oy1b3RimCxFRicnGRvEISrEx5Ygf5tUv53xcKE/s200/D.JoaoDaCamara.jpg" width="192" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial;"><span><b><span style="font-size: medium;">Havia</span><span style="font-size: x-large;"> </span></b><span style="font-size: medium;">quase um</span></span><span style="font-size: medium;"> ano que estava na loja, mercearia num bairro escuro, em que mal entrava de esguelha, como espreitando a medo, um raio de sol, entre as casarias muito altas da rua tortuosa.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Com </b>doze anos, que saudades tinha da aldeia, da família, dos antigos companheiros de escola, dos cães amigos que ladravam de noite a vigiar a casa!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Tudo</b> lá tão longe! Ah! Se ele soubesse!...</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Pois</b> nem uma lágrima lhe viera anuviar o último adeus, quando a diligência dera a volta na estrada e ele vira sumirem-se os choupos da ribeira e o lenço que mão saudosa sacudia no alto do cabeço.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>É</b> que o deslumbrava a ideia de Lisboa, de que tantas maravilhas grandes lhe contavam. Ainda agora partia e já se via de volta na aldeia, de relógio e cadeia de oiro, a falar de alto, a puxar o bigode, a dar enchente, como o Januário, que lhe arranjar o lugar.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Com</b> o seu examezinho de instrução primária, marçano de uma tenda... Não, que os pais não o queriam para cavador.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Tinham</b> sido consultados o mestre-escola, o prior, o senhor Freitas, lavrador muito importante que arrastava tudo nas eleições, o Custódio, velhote de muito bom conselho, e todos se haviam mostra de acordo: não havia como Lisboa para fazer um homem. Era ver o Januário que tinha casado com a viúva do patrão. A loja era de um cunhado dele, bom homem, áspero, mas bom homem. Os olhos baixos do Manuelzito, fitos no chão, viam no tijolo resplandecer auréolas, que giravam como fogo de vistas pelas festas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Ali </b>estava, havia quase um ano; e no desvão da escada, onde às dez horas o mandavam deitar, a morrer de calor no Verão, no Inverno a morrer de frio, punha-se a rever os campos e a casa deixados sem as lágrimas, que lhe corriam agora em grossos fios pelas faces.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Os </b>primeiros dias tinham passado muito lentos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>A</b> conselho do Januário, um biscoito ou outro da mão papuda e oleosa do merceeiro haviam-no ajudado na tarefa. Assim é que ele havia de ser homem, um dia. Mas o patrão mostrava maior pressa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Pai, </b>mãe e mestre-escola nunca lhe haviam batido. Atreveu-se uma vez a declará-lo. Foi pior. Chegou o Verão. As festas de São João e de São Pedro aumentaram-lhe a tristeza. reviu nesses dias mais intensamente a alegria da aldeia, os bailes à noite em volta da fogueira, a ida à fonte pela manhã, o sino a tocar à missa, e ele a pensar que, quando fosse crescido, havia de ter uma namorada por quem queimasse uma alcachofra, a quem cantasse uma quadras falando de estrelas e de flores.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>A</b> bulha nas ruas, nessas noites, não o deixavam dormir. Cada bomba era uma pancada no coração. Um sol-e-dó que passou tocando arrancou-lhe lágrimas de imensa saudade.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;">Pelos Santos, com a melancolia do tempo, ainda foi pior.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Depois </b>veio o Inverno, começaram os dias de chuva. O mau tempo irritava o patrão, porque lhe afugentava fregueses. Na loja, com recantos muito negros, acendiam-se muito cedo os candeeiros, e o Manuelzito tinha pena da sombra em que se acolhia com maior amor. Pasmava os olhos, fugia com o pensamento para muito longe.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>-- Acorda,</b> ralaço! -- gritava-lhe o patrão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Estava</b> a chegar o Natal.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Que</b> lindo era o Natal lá na aldeia!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Andavam</b> na rua a abrir um cano; quase ninguém ali passava; os passeios eram cheios de lama. O patrão andava furioso.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Então</b> o pequeno teve uma ideia.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Lembrou-se</b> de fazer muito misteriosamente um presépio. O segredo em que havia de trabalhar mais o animava na tarefa.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Todos</b> os dias, muito a medo, enquanto o patrão almoçava ou saía da loja algum instante, vinha à porta, se não havia freguês a servir, espreitava, corria, apanhava um nadinha de barro nas escavações do cano. Escondia-o, e debaixo do balcão, quase às apalpadelas, ia fazendo as figurinhas.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Assim</b> modelou o menino Jesus, que deitou num berço de caixa de fósforos, Nossa Senhora de mãos postas, São José de grandes barbas, os três Reis Magos a cavalo, e os pastores, um a tocar gaita de foles, outro com um cordeirinho às costas, e uma mulher com uma bilha. Não se pareceriam lá muito; mas ele deu provas de que sabia puxar pela imaginação.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Sempre</b> lhe faltava alguma coisa. Havia problemas difíceis de resolver.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Um</b> dia, engraxando as botas do patrão, lembrou-se de engraxar um dos reis, e pôs-lhe depois umas bolinhas brancas, de papel a fingir os olhos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Aos</b> anjos fez asas com as penas de uma galinha que depenou para um jantar de festa que não comeu. Moeu vidro para fingir as águas do rio e, no papel de embrulho recortou um moinho que só havia de armar à última hora.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Levou</b> nisso parte de Novembro e Dezembro todo, até ao Natal.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Escondia</b> os materiais debaixo da enxerga e, de quando em quando, revia-se na obra.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>O</b> que mais o encantava era o menino Jesus, com a cabeça do tamanho de um grão de milho, com buraquinhos a fingirem olhos, ouvidos, nariz e boca. Tinha mãos com cinco dedos riscados a canivete e dois pezinhos que ele achava um encanto.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Com </b>tiras de papel azul havia de fazer o céu e, como não o tinha doirado onde recortasse a estrela, fez em papel branco uma meia Lua; vinha quase a dar na mesma.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Aquele</b> mês passou correndo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Era</b> a véspera do Natal. Às dez e meia, o patrão mandou-o deitar e saiu.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Que </b>alegria estar só!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Não</b> lhe deixavam luz; mas que importava? Às escuras armaria o presépio. E logo principiou. Enrolou o moinho, pôs-lhe as velas; esticou o papel azul que fingia o céu e pregou nele com um alfinete a meia Lua; espalhou o vidro moído, num S em volta das palhas; dispôs as figurinhas, suspendeu os anjos. Depois fez uma carreira de fósforos de cera, que todos se havia de acender ao mesmo tempo, num deslumbramento, quando desse meia noite.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Deram</b> onze e três quartos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Ajoelhou. </b></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Batia-lhe</b> o coração, que lhe parecia que deviam de ser milagrosas as figurinhas, que delas lhe viria algum bem, consolação de sua vida triste.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Que </b>seria quando ele iluminasse o desvão da escada e os santinho se pusessem todos a luzir quase tanto como os verdadeiros? Rezava-lhes... Rezava-lhes... Àquela hora, lá na aldeia, tocavam os sinos alegres e iam ranchos contentes a caminho da igreja. Lá dentro reluzia o trono, e o sacristão, muito atarefado, ia, vinha...</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Meia-noite!</b></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Acendeu</b> os fósforos e ficou embasbacado!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Nunca </b>vira coisa tão perfeita. Os anjos voavam deveras, os cavalos dos reis galopavam, o rio corria, as velas giravam no moinho e os pontinhos do Menino Jesus sorriam-lhe no rosto a são José e a Nossa Senhora!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Pôs-se</b> a cantar, como lá na aldeia:</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"> Andava nessas campinas,</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"> Esta noite, um querubim.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Tão</b> enlevado cantava, que nem ouviu o patrão abriu a porta, entrar na loja, chegar ao desvão.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Acordou-o</b> do êxtase um pontapé. </span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>-- Isso!..</b>. Agora larga-me fogo à escada!... Varre-me já esse lixo!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>E</b> ele, a chorar, levantou-se, foi buscar a vassoura.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>O</b> bruto continuava aos pontapés.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>-- Vá!...</b> Vá!</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Mas</b> quando se deitou, encontrou na enxerga uma figurinha. Apalpou-a, conheceu-a logo: era a do Menino Jesus. Beijou-a muito. Pior vida levara do que ele...</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><b>Sentiu </b>de repente um dó muito grande do patrão, que não vira nada, nem que era tão bonito aquele Menino, com um olhar tão meigo nos seus olhinhos picados.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: medium;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: medium;"><b>Comentário. Um texto dickensiano, ou de como a boçalidade, como toda a força bruta que lhe assiste, acaba por desvanecer-se impotente ante o halo que fica a pairar no fim deste conto: apesar de tudo o Amor triunfa.</b></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: right;">
<span style="font-size: x-small;"><span style="font-size: small;"><em><u>Contos do Natal</u> </em>(1909) / <em>Gloria in Excelsis -- Histórias Portuguesas de </em>Natal, edição de Vasco Graça Moura, 2003, pp. 75-79.</span></span></div>
Unknownnoreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-76456735291950299762016-08-20T01:36:00.004+01:002021-02-24T12:19:05.960+00:00#10 - O CADÁVER DE JAMES JOYCE (José Luís Peixoto, 1974)<div style="text-align: justify;">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhRLKabiS5wUorjQeuSDZ5ImkPdC0GdrP_pzhb0GEZDejbVN9VXAgVYa_mD17zA9z1CdwM5ZEe12jBb5T2jag21WLYAa7BfhpdoqOpoWd3sMkpuMD2UQjEIqAJiqlBiWt5AZ0P6_0gUZg8R/s1600/JoseLuisPeixoto.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><strong><img border="0" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhRLKabiS5wUorjQeuSDZ5ImkPdC0GdrP_pzhb0GEZDejbVN9VXAgVYa_mD17zA9z1CdwM5ZEe12jBb5T2jag21WLYAa7BfhpdoqOpoWd3sMkpuMD2UQjEIqAJiqlBiWt5AZ0P6_0gUZg8R/s200/JoseLuisPeixoto.jpg" width="200" /></strong></a></div>
<span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><span><span><span><b>Quando</b></span><span><b> </b>acabei de</span></span><span> escrever o meu primeiro romance, fechei-me em casa durante duas semanas. Nesse tempo fechado do mundo, vivi cada olhar de cada personagem, cada esperança, cada angústia. Na altura, era muito novo. Creio que se o tivesse feito hoje, me teria suicidado no último dia dessas duas semanas, como desfecho lógico. A lógica, o absurdo da lógica e a lógica precisa, milimétrica, do absurdo, são para mim assuntos que me absorvem, como se fossem, de facto, a primeira regra da minha vida. Mas, como disse, era muito novo, e esse pânico não tinha ainda atingido as dimensões actuais que, juntamente como outros pânicos cansaços, acabarão por ser o meu fim. Nesse tempo, eu era o único leitor de mim próprio e ninguém esperava nada das minhas palavras. A vida era menos difícil, portanto. Eu considerava-me um grande escritor desconhecido e era quase feliz, porque fechava os olhos a muitas coisas.</span></span><br />
<span><b>No</b></span><span><b> </b>primeiro dia</span><span> em que saí à rua, depois dessas semanas, trazia ainda no olhar o olhar das personagens e passeei-me por Lisboa, como se não conhecesse Lisboa, como se me admirasse com tudo. As horas dessa tarde muito fria de Janeiro passaram e eu passei com elas. Aos poucos, deixei de ser as personagens para ser o narrador: uma voz maior que eu, uma voz que tinha surgido do romance como uma voz da terra. Descrevi, para mim próprio, as paredes, os pombos a andarem devagar no chão, como se todos os pombos fossem uma criatura maior e que se amontoa e se estilhaça. Descrevi, para mim próprio, as pessoas a olharem-me e imaginei o que elas imaginavam de mim. Mas também aos poucos, o narrador saiu de mim, talvez assustado com o ridículo de ser um narrador a descrever mentiras dentro de uma pessoa, e voltei a ser o que sou: qualquer coisa absurda que procura uma lógica impossível e que se chama Zé Luís. No entanto, depois de duas semanas a observar palavras, depois de um ano a desenterrar palavras, eu era alguém que só podia fazer coisas grandiosas. Só essa ideia me parecia lógica. Entrei numa livraria do Chiado. Vi-me a entrar na livraria e imaginei: José Luís Peixoto entra numa livraria, onde ainda se ignora a importância das suas palavras. Creio que o narrador ainda devia andar dentro de mim, escondido em algum canto escuro.</span><br />
<span><b>Não</b></span><span> sei como</span><span> explicar. Tirei um exemplar do </span><span>Ulisses</span><span> da prateleira e comecei a ler. Nunca o tinha lido todo. Ainda não li. Não acredito que alguma vez o vá ler todo. No entanto, tirei um exemplar da prateleira e li dois parágrafos. Gostava de escrever assim. O efeito que aquela breve leitura teve em mim foi inesperado. Instantaneamente, lembrei-me de ter lido, havia alguns anos, numa enciclopédia da minha irmã, que o James Joyce estava enterrado em Zurique. Lembrei-me também que, na altura tinha acabado de ler </span><span>The Dubliners</span><span> e que senti algo de revolta. Na livraria, sem que os meus olhos vissem a livraria, imaginei-me, secretamente, um herói. Eu tinha escrito um dos maiores romances da história da literatura. </span><span><b>Eu</b></span><span> só podia fazer coisas grandiosas.</span><br />
<span><b>Em</b></span><span> casa, guardei</span><span> duas camisolas dentro de uma mochila e saí. Tinha dinheiro e fui para Santa Apolónia. Comprei um bilhete para Zurique. Não sabia que se podia ir para Zurique de comboio, mas fui informado de que o Sud-Express ia sair dentro de poucos minutos e que, assim que chegasse a França, devia mudar de comboio. Fui todo o caminho de pé no corredor. Assustava-me a ideia de não me conseguir controlar e de poder contar o meu plano a qualquer emigrante de Paris ou a qualquer francês que andasse a fazer um interrail e que partilhasse comigo o vagão. Fui sempre a olhar pela janela e, interrompido de vez em quando por revisores, pensei sempre que ia chegar a Zurique e que ia desenterrar o corpo do James Joyce e que ia levá-lo para Dublin. Donde nunca devia ter saído. Troquei de comboio e cheguei a Zurique.</span><br />
<span><b>O</b> </span><span>dia estava</span><span> a acabar. Telefonei à minha mãe e disse-lhe que estava no Rossio. Estava num telefone público da Suíça. Tenho uma licenciatura em alemão. Tenho um diploma carimbado que garante que sou licenciado em alemão. Debaixo do carimbo, falta dizer que foram quatro anos de cábulas e de ajudas por parte de alguns colegas mais caridosos. Mas, mesmo assim, o meu alemão básico chegou-me para alugar um quarto numa pensão pequena, pequena, minúscula, mesmo ao lado do cemitério. A senhora da recepção, com as mãos sobre os papéis de registo, virou os óculos na ponta do nariz quando lhe disse que fazia questão de ficar no quarto ínfimo, que tinha uma janela do tamanho de um isqueiro com vista para o cemitério: o branco das campas desenhado no negro, as formas das árvores esculpidas no negro.</span><br />
<span><b>Quando</b> </span><span>o sol</span><span> nasceu, tinha as pernas dormentes. Desci para o pequeno-almoço; torradas e café com leite que a senhora da recepção me serviu contrariada. Comi devagar. Não tenho apetite de manhã. Esperei três cigarros até que abrissem o portão do cemitério. Eu e duas velhas fomos as primeiras pessoas a entrar. Tentei procurar a campa sozinho, mas perdi-me. Encontrei uma das velhas a trocar flores murchas de uma jarra e perguntei-lhe. James Joyce? Nunca ouvi falar. Não lhe expliquei. Há coisas que não vale a pena tentar explicar. Andei toda a manhã, às voltas no cemitério, a olhar para nomes, a olhar para datas. Por fim, era já hora de almoço, estava com fome e frio, encontrei a campa do James Joyce. Estava abandonada. Nenhuma mulher lhe ia trocar as flores murchas, não tinha flores. Tinha musgo à volta das letras. James Joyce escrito a musgo.</span><br />
<span><b>Voltei</b></span><span> à pensão.</span><span> A senhora da recepção assustou-se com a minha chegada. Assustou-se ainda mais quando lhe perguntei pelo almoço. Pão, duas salsichas fritas e dois ovos estrelados pela senhora da recepção com um avental de folhos. Saí para ir comprar uma picareta e uma pá. Tive que apontá-las com o dedo. Não sei dizer picareta em alemão. Fui para o meu quarto dormir e sonhar. Acordei a meio da noite. Acordei logo totalmente desperto, como se não tivesse acordado, como se não tivesse dormido. Agarrei a picareta, a pá e a mochila. Saí do quarto sem fazer barulho. Na rua vesti as duas camisolas que trazia na mochila. Estava muito frio. Subi para cima de um Mercedes que estava estacionado e saltei o muro do cemitério. Procurei o caminho que conhecia e fui directo à campa do James Joyce. Enfiei a ponta da picareta numa das juntas do mármore e fiz força, força, força. O mármore não se movia um único som de mármore a arrastar-se. Quando as minhas forças já desesperavam, fechei os olhos e, com toda a vontade dos meus braços e do meu corpo inteiro, ouvi o mármore a soltar-se. Comecei a cavar. A picareta e, depois, a pá. O som da picareta, e, depois, o som da pá. O meu entusiasmo a apressar-me. Depois, a picareta a acertar em algo. O tesouro. A pá a tirar a terra solta. As minhas mãos a tirarem a terra solta. A tampa do caixão partiu-se debaixo dos meus pés. Afastei pedaços de caixão Lá estava o James Joyce. Segurei-lhe o braço direito, a mão que escreveu o </span><span>Ulisses</span><span>, e os ossos separaram-se pelas juntas. Segurei-lhe o crânio: os olhos do James Joyce, o crânio onde nasceu o </span><span>Ulisses</span><span>. Olhei para o céu e não encontrei a lua. Algumas estrelas entre as nuvens. Na noite, senti-me grandioso e feliz. Guardei tudo o que me parecia pertencer ao James Joyce dentro da mochila. Os ossos, uns contra os outros, faziam um barulho brando. Saí da cova e comecei a tapá-la com pás cheias de terra. Animado pelo peso do James Joyce nas minhas costas, empurrei de novo a pedra sobre a campa. De manhã, estava na estação de comboios.</span><br />
<span><b>Sentado</b></span><span> num vagão,</span><span> levava a mochila sob o colo. Pensava que era revelador que o James Joyce, ele próprio, pesasse menos do que a maioria das edições do </span><span>Ulisses</span><span>, quando à passagem pela fronteira, o comboio abrandou e parou. Entrou um polícia, bigode, patilhas, e pediu-me o passaporte. Apontou para a mochila e perguntou; chocolates? Sorri. Saiu. Meio cigarro depois, o comboio continuou. A paisagem, as árvores despidas, as poças de água, deixavam-me pensar. Por vezes, as aldeias. Na pequena estação de uma aldeia cinzenta e verde, decidi sair. Entrei num café, conheci um senhor. Ofereceu-me um quarto, ofereceu-me trabalho a tratar de cinco vacas. Apaixonei-me pela filha do senhor. Guardava a mochila atrás de uma cómoda. Passava as noite, no quarto ao lado da filha do patrão, Sabine era o seu nome, a pensar nela e a sofrer por ela. Às vezes, retirava o James Joyce de dentro da mochila e estendia-o sobre a cama para não ganhar mofo. Passaram-se três meses de que não me orgulho.</span><br />
<span><b>Quando</b> </span><span>decidi ir-me</span><span> embora, era já Primavera. Três das cinco vacas iam parir, mas eu já estava farto de amor não correspondido e Dublin esperava-me. De madrugada, dirigi-me à pequena estação e apanhei o primeiro comboio que passou em direcção a Paris. Troquei de comboio. Estava cansado. Mesmo James Joyce, tão leve, parecia-me demasiado pesado. Considerei ainda a hipótese de abandoná-lo num contentor do lixo de Paris, mas eu não sou daqueles que desistem. Enquanto tenho um resto de esforça, tenho um resto de esperança. Eu não sou daqueles que desistem. E cheguei a Calais. Os barcos estavam cheios e só podia seguir viagem no dia seguinte. Enganei um inglês. Roubei-lhe o bilhete e também lhe teria roubado a carteira e o relógio se me apetecesse, mas o bilhete bastava-me. Em Inglaterra viajei sempre de autocarro. Passei metade do tempo enjoado e metade do tempo a dormir, de boca aberta, tombado sobre o passageiro do lado, abraçado ao James Joyce. Em Londres, decidi apanhar um avião directo para Dublin. Estava muito cansado e muito sujo. Ainda cheirava a vaca. Tinha saudades das personagens do meu romance e vontade de telefonar à minha mãe e dizer-lhe que estava no Rossio, estando mesmo no Rossio.</span><br />
<span><b>Depois</b></span><span> do check in,</span><span> depois da mochila ter sido radiografada como bagagem de mão, depois de me terem avisado com uma piscadela de olho que não se podia viajar com comida, mas que desta vez passava, sentei-me numa das cadeiras da primeira classe. A hospedeira tirou-me uma palha do cabelo e serviu-me champanhe. Respirei. A centenas de metros de altura, abri pedacinho do fecho da mochila e olhei para o James Joyce. Confiei nele, já éramos amigos, pousei-o no meu assento e fui à casa de banho. Lavei a cara. Quando voltei, estavam dois miúdos a atirar o James Joyce um para o outro. Agarrei a mochila furioso e contive-me para não dar uma estalada ao miúdo. A mãe dele, sentada ao lado, acordou e disse: oh Sean. Apetecia-me chegar a Dublin. A aterragem foi suave.</span><br />
<span><b>As</b></span><span> ruas, os</span><span> pubs, as pessoas. Atravessei três pontes até encontrar um parque. No parque, caminhei até encontrar uma árvore que me agradasse. Era uma árvore grande, talvez um plátano. Entre as raízes, cavei com as mãos. Primeiro a relva, depois a terra. A noite crescia devagar na tarde. Passavam pessoas que me olhavam por um instante, mas todas desviavam o olhar. Quando não estava ninguém, nem nos caminhos do parque, nem atrás dos arbustos, enfiei o James Joyce, dentro da mochila, no buraco e cobri-o com terra e com uma camada de relva. Olhei por instantes para o sítio onde o deixei e considerei que tinha feito algo de bom. Levava uma falta no coração. Sentia pena de deixar o James Joyce. Na altura ainda não sabia que quem deixa as coisas que ama espalhadas pelo mundo, sente sempre falta de algo onde quer que esteja. Fui para Lisboa. Na noite seguinte, dormi já na minha cama, abraçado ao manuscrito do meu primeiro romance.</span><br />
<br /></span>
<strong><br /></strong>
<b>Nota - Um conto que, não sendo um primor de estilo, salva-se, e bem, pelo absurdo e pelo humor</b>.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg247_9ul__kmAHQC_QrKVv-Rs55REaFVvjxltIavRtOTBjwNzVlm7KrF9d-TMkHrd61NZYp2Z-dJ0F5PaAEog-0j1CgxmpUqtnsXyv4HKnzmURt3FIoqkSfMXvwHcSbQPHRwu40FbE10IS/s1600/OContoNaLusofonia-2.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg247_9ul__kmAHQC_QrKVv-Rs55REaFVvjxltIavRtOTBjwNzVlm7KrF9d-TMkHrd61NZYp2Z-dJ0F5PaAEog-0j1CgxmpUqtnsXyv4HKnzmURt3FIoqkSfMXvwHcSbQPHRwu40FbE10IS/s400/OContoNaLusofonia-2.jpg" va="true" width="260" /></a></div>
</div>
Unknownnoreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-8131137459199907672016-07-19T19:21:00.004+01:002021-02-24T12:18:21.286+00:00#9 - NATAL DE CONSOADA (Manuel de Boaventura, 1885-1973)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiYkkdvxbSTfGpsSHQc5CMThh_qWr2Yd6-z6W6S4-WjE0sncsg86U59mjwSzeKyUONNyIIs5wdD4QGaazz8ddXbGZrt4K1d7a6yXCAazdfXVaR4WKdYEyfzxSCvLUK4dmIuDVZfPBzWscni/s1600/ManuelDeBoaventura.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiYkkdvxbSTfGpsSHQc5CMThh_qWr2Yd6-z6W6S4-WjE0sncsg86U59mjwSzeKyUONNyIIs5wdD4QGaazz8ddXbGZrt4K1d7a6yXCAazdfXVaR4WKdYEyfzxSCvLUK4dmIuDVZfPBzWscni/s200/ManuelDeBoaventura.jpg" va="true" width="165" /></a></div>
<div align="justify">
<span style="font-family: verdana; font-size: medium;"><span><span><b>O</b></span><span> Natal é</span></span><span> a grande festa do mundo cristão.</span><br /><span>
.......................................................................................... </span><br />
<span><b>Em</b></span><span> parte alguma de Portugal, a festa do Natal toma um aspecto tão sinceramente festivo e suavemente poético, como no Minho. Natal e Páscoa são festas puramente regionais: não há tristezas nesses dias, a não ser para a família dos ausentes e para aqueles que perderam algum ente querido. Então a alegria, é substituída pelas lágrimas consoladoras da saudade.</span><br />
<span><b>A</b></span><span><b> </b>consoada... Quando chega esse grande dia, de regozijo familiar, os que estão longe vêm procurar no lar de seus maiores, os pais, as esposas, os irmãos, os filhos... -- para se reunirem ao redor da mesa comum, no aconchegado banquete da «noite grande».</span><br />
<span><b>Sobre</b></span><span> a vetusta mesa de castanho refulge a alva toalha de linho, que as mães e as filhas fiaram à lareira, em frígidas noites de invernia; e teceram, depois, em perfumadas manhãs de primavera, quando os homens, na azáfama das agras, suavam o pão de cada dia.</span><br />
<span><b>Sobre</b></span><span> a nevada toalha, os bojudos pichéis do vinho verde, rubro e saltarelo, os copos reluzentes e os talheres a brilhar, como prata de lei.</span><br />
<span><b>Grandes</b></span><span> travessas de bacalhau, com batatas farelentas e «tronchos» de hortaliça; o cheiroso arroz, que o polvo purpureou; os bolinhos; os mexidos perfumados a canela; o vinho quente, adoçado com mel; as castanhas, as nozes, os figos... -- ementa farta e sobejante, que atulha a mesa e acoberta a toalha. A abundância é a principal característica da Noite Boa de Natal.</span><br />
<span><b>Depois</b> </span><span>a alegria, a grande alegria, que campeia infrene! A mãe põe, no trafogueiro, o enorme canhoto de carvalho, que há-de sustentar o brasido, e arder toda a noite. As crianças galram e assam as pinhas mansas, para tirar os pinhões e jogar o rapa, e a «supetaina-somandaina».</span><br />
<span><b>Um</b></span><span> diz: -- «Supetaina!»</span><br />
<span><b>Logo</b></span><span> outro: -- «Somandaina!»</span><br />
<span><b>-- «Pernão</b></span><span><b> </b>ou pares?»</span><br />
<span><b>-- «Abre</b></span><span> mão e dá-le ares.»</span><br />
<span><b>-- «Quatro</b> </span><span>pares...»</span><br />
<span><b>A</b> </span><span>lenga-lenga faz rir.</span><br />
<span><b>A </b></span><span>carcaça das pinhas guarda-se, para os dias de trovoada.</span><br />
<span><b>Quando</b></span><span> lampeja o fogo no Céu, e ribomba o trovão...</span><br />
<span><b>- S.</b></span><span> Jerónimo! Santa Bárbara Virgem!</span><br />
<span><b>...vai</b></span><span> para o lume uma pinha da noite santa, para afugentar o sarrisco...; e esconjura-se a trovoada:</span><br />
<em><span><b>- «O</b></span></em><em> Senhor te guie,</em><br />
<em>p'ra onde não haja,</em></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: medium;"><span style="font-family: verdana;"><em>nem palha, nem grão,</em><br />
<em>nem alminha de cristão...»</em><br />
<span><b>O</b></span><span> alcornoque de carvalho ou raízeiro de pinho, arde em labareda; aquece a cozinha e consola os corpos, porque lá fora cai codo branco... E quando os vivos recolherem aos catres, as alminhas dos defuntos da casa, virão, trémulas de pavor, da algidez da terra do adro, ou entanguidas pela neve, da jornada, desde o misterioso País da Verdade, aquecer-se ali, àquela mesma lareira, onde, tempos antes, quando o sangue lhes circulava nas veias e a vida enchia os seus corpos, agora desfeitos, tantas vezes se vingaram das intempéries dezembrinas.</span><br />
<span><b>Que</b></span><span> saudades que isto faz! O raízeiro crepita, espirrando faúlhas de fogo para os pés das crianças, entretidas no debulho das pinhas e a joguillhar pinhões e nozes ao «par-e-pernão».</span><br />
<span>O</span><span> pai e restantes convivas, sentados nas preguiceiras, rezadas as graças a Deus, contam histórias de mouras encantadas, e contos bíblicos, de quando Jesus era menino, e vivia na terra, entre os homens. A avó, já muito velhinta, corcovada, narra-os aos netos traquinas, com paciente carinho e bondade:</span><br />
<span><b>«<em>Era</em></b></span><em><b> </b>uma vez...</em><span>»</span><br />
<span><b>E </b></span><span>segue o lindo contarilho. Pensa depois nos seus queridos mortos; o marido, que doze anos antes, numa noite como esta, estivera sentado naquele mesmo taburno, encostado à córa do forno, rezando ao Menino-Deus, com os netinhos sobre os joelhos; nos filhos queridos; no pai, na mãe e nos irmãos, já todos no Reino da Glória, e que não esperarão muito, que ela se lhes vá juntar. Quem sabe se chegará a outro Natal! Ah! não! Não chegará!</span><br /><span><b>
Dentro</b> de si, vai um mundo de pensamentos, a correr à desfilada! Já mais de oitenta natais passaram por ela -- alegres uns, bem tristes, outros. O seu corpo mirrado de velhez e entorpecido pelo frio de tantos invernos, não chegará até às neves do futuro Natal. Estava ali, ainda viva, fitando aquele canhoto, que ardia com chama azulada, para aquecer as almas santas, dos que da casa se foram -- ora a gozarem da Bem-aventurança eterna.</span><br />
<span><b>Quase</b></span><span><b> </b>meia-noite. Tudo debandou. A velhinta vela, ainda, meio acordada, meio dormente. Começa o solilóquio com os mortos:</span><br />
<span><b>-- «António!</b></span><span> Que triste é este Natal, sem ti! Teresinha! Que saudades, querida filha, que saudades! Aquece a tua alminha, menina, ao lume da nossa lareira. O teu lugar era aqui, ao meu lado... E tu, Manuel? E tu, João? Aconchegai-vos, filhos! Faz tanto frio lá fora!»</span><br />
<span><b>Quando</b></span><span> for a sua vez -- quam sabe, se já no primeiro Natal -- a sua alma, se Deus o permitir, virá, também aquecer-se às cinzas daquele lar. Consola-a essa ideia. Está sendo pesada na terra: a morte libertá-la-á do peso dos anos e dar-lhe-á descanso na eternidade imensurável -- mistério que só Deus conhece.</span></span><br /></span>
<br />
<strong><em><br /><div style="text-align: right;"><strong><em><u>Lapinhas do Natal</u></em>, Braga, Editora Pax, 1964, pp. 25-31.</strong></div></em></strong>
<strong><div style="text-align: justify;"><strong><br /></strong></div>nota - </strong><b>Natal idílico, a que nem a pobreza endémica resistia. Só a morte, porém. Só a saudade dos mortos carrega a noite com os tons mais escuros, naquele Natal, em todos os Natais de qualquer família.</b><br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh1yBrMvBEE3zs3-fZ1Xc6-mDbFQXfOOu5EchaVa4V-arGUUTusqk54WX6kfeCkTaj45Bw5IPxlH1w365iulnfS6TYwmO3fTOCZ_7ZXzlv8oracBOAKuBgzyDsrXGh4JWy7K9i53LwxSPAl/s1600/ManuelDeBoaventura-LapinhasDoNatal.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh1yBrMvBEE3zs3-fZ1Xc6-mDbFQXfOOu5EchaVa4V-arGUUTusqk54WX6kfeCkTaj45Bw5IPxlH1w365iulnfS6TYwmO3fTOCZ_7ZXzlv8oracBOAKuBgzyDsrXGh4JWy7K9i53LwxSPAl/s400/ManuelDeBoaventura-LapinhasDoNatal.jpg" va="true" width="287" /></a></div>
</div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-10206200296360106972016-06-27T20:06:00.009+01:002021-02-24T12:15:23.921+00:00#8 - D. QUITÉRIA DE CEDROS (Manuel Amaral, 1921-2003)<div align="justify">
<span><span><span style="font-family: trebuchet; font-size: medium;"><span><span><b>De</b> </span><span>dia tinha</span></span> <span>havido umas réstias de sol mas, logo depois das cinco da tarde, a névoa amortalhou os montes com cinza.</span></span></span></span></div>
<div align="justify">
<span style="font-size: medium;"><span style="font-family: trebuchet;"><span><b>Tinham-se </b></span><span>aberto muitas pipas e assado muitas castanhas. O S. Martinho tinha sido festejado como mandava a tradição. O velho adágio </span><em>No S. Martinho prova o teu vinho</em><span> fora cumprido mais que escrupulosamente.</span><br />
<br />
<span><b>D.</b></span><span> Quitéria levou o candeeiro para o quarto e começou a despir-se. A chuva caía miudinha e, por entre as vidraças, só se via névoa cinzenta. Até os choupos da leira mais próxima estavam afogados naquela cinza molhada. Já em trajes menores, deitou a cabeça para o corredor. Na cozinha havia luz. Maria das Dores, a filha mais velha, ainda costurava, com certeza. Era, dos três filhos que tinha, o único que amava verdadeiramente a casa e o trabalho, o único que se parecia com ela.</span><br />
<span><b>A</b> </span><span>mais nova, com a sua vaidade de vestidos e de luxos, estava já a amargar a vida. O Lopes, empregado do doutor Santos, que fugira com ela, com um olho no corpo bem feito e o outro na hipótese de mandar na quinta de Cedros, demonstrava-lhe todos os dias que os sonhos bonitos de andar bem vestida, de ter em casa coisas finas, mobília e rádio, tinham de ser alimentados com dinheiro.</span><br />
<span><b>Ela</b></span><span> veio puxar pela parte do pai. Mas aquilo também pôs ponto final nos restos que a ligavam à quinta:</span><br />
<span><b>-- Agora</b></span> <span>não tens cá nada em casa! Cada mocho no seu souto...</span><br />
<span><b>Era</b></span><span> a despedida definitiva.</span><br />
<span><b>Maria</b></span><span> das Dores trabalhava todas as noites num enxoval que D. Quitéria achava inútil, pois nunca soubera de nenhum derriço a sério da filha. Bem que lhe tivessem arrastado a asa mas Dores sabia que não era nenhuma beleza e sentia que a sua futura herança era a ambição dos apaixonados. E escorraçava-os desabridamente, como quem se defende de uma ofensa.</span><br />
<span><b>Mas </b></span><span>um instinto cego lançava-a para o enxoval. Já passava bem dos trinta e bem poucas esperanças teria de casar.</span><br />
<span><b>D.</b> </span><span>Quitéria olhava para ela e lembrava-se das duas irmãs, que já estavam no reino da verdade. Também elas tinham trabalhado sempre nos enxovais e morreram sem casar.</span><br />
<span><b>O</b></span><span><b> </b>pai era austero e em casa respeitavam-no cegamente. Era uma sentinela que todos os rapazes temiam nas festas. Sabiam que um braço dele valia por dois homens.</span><br />
<span><b>D. </b></span><span>Quitéria, embora fosse a filha predilecta do velho Gomes, também nunca tinha conseguido namorar mais que poucos dias enquanto o pai foi vivo. O Zezinho do Cabo há muito que lhe deitava uns olhos em que lhe adivinhava ternuras mas, só depois do velho Gomes morrer, é que ele se atreveu a rondar-lhe a porta e a chegar-lhe à fala.</span><br />
<span><b>O</b></span><span><b> </b>Zé do Cabo tinha uma boa casa e uns bons campos e o casamento não era desvantajoso para nenhuma das partes, embora ele fosse um pouco mole, mais amigo das festas e da caça do que das terras.</span><br />
<span><b>Mas,</b></span><span><b> </b>ela, a Quitéria de Cedros, valia por dois homens, já o dizia o velho Gomes.</span><br />
<span><b>D.</b> Quitéria passou realmente a dominar a casa. Era a patroa. Era dela que os criados recebiam ordens. Era sempre com ela que os compradores de vinhos se entendiam, mesmo antes do desastre de caça vitimar o marido.</span><br />
<b><br />
<span>Mas</span></b><span> hoje D. Quitéria não adormecia. O dia tinha sido triste e ela andava com o cérebro sem energia, sem aquela força de comando que era o seu orgulho.</span><br />
<span><b>A</b></span><span> luz estava mortiça no candeeiro. Quando olhou para um Cristo de parede, assaltou-lhe um pressentimento:</span><br />
<span><b>-- Oh!</b></span><span> Ainda não rezei.</span><br />
<span><b>Rezou </b></span><span>as velhas orações mas, contra o costume, as pálpebras continuavam levantadas, no cérebro cruzavam-se mil e um pensamentos e o coração sobressaltava-se em confusas apreensões.</span><br />
<b><span>Voltou</span> </b><span>a vestir a saia e o casaco e, vagarosamente, aproximou-se da cozinha.</span><br />
<span><b>Dores,</b> </span><span>com duas agulhas de cobre, fazia um casaco de lã. Ao lado estava uma carta aberta, donde saíam pontas de roupa interior, por estrear.</span><br />
<span><b>Sobressaltou-se</b> </span><span>ao dar com a mãe e um rubor tomou-lhe a cara.</span><br />
<span><b>-- Para</b></span><span><b> </b>que estás a perder tempo com essas coisas? Podias-te ir deitar.</span><br />
<span><b>A</b></span><span> Dores franziu as sobrancelhas e começou a arrumar as coisas.</span><br />
<span><b>-- O</b></span><span> teu irmão já veio?</span><br />
<span><b>Mas </b></span><span>Dores estava ofendida. Não podia perdoar que a mãe a apanhasse de surpresa enquanto trabalhava no enxoval e, principalmente, que dissesse que estava a perder tempo.</span><br />
<span><b>-- Parece</b></span><span> que a mãe não se lembra que dia é hoje. É o dia dele!</span><br />
<span><b>-- Que</b></span><span> dizes?</span><br />
<span><b>-- Que</b></span><span> a adega deve estar cheia de gente e que o Joaquim está a vomitar debaixo de alguma pipa.</span><br />
<span><b>A</b></span><span> mãe retesou o corpo e os beiços premiram-se na cara vermelha de indignação.</span><br />
<span><b>D.</b></span><span> Quitéria sabia que o filho era um desregrado, que assaltava a honra das filhas dos caseiros e que, nas fárreas e tibórnias, as suas bebedeiras eram célebres pelo número invulgar de canecas para as atingir.</span><br />
<span><b>Mas,</b></span><span><b> </b>com os sonhos que punha nele, com que o idealizava, esforçava-se por pensar que ele acabaria com aquela época de poucas vergonhas e bebedeiras, próprias da idade.</span><br />
<span><b>Ele</b></span><span> deveria ser, finalmente, o dono de Cedros, aumentaria a herança com o celibato da Dores, a quinta ficaria intacta, haveria dinheiro no cofre para pagar a parte da mais nova e ele seria, assim, o Morgado de Cedros, com a consideração de todos, com a sua palavra a valer como notas de navio.</span><br />
<span><b>-- Desavergonhada!</b></span><span> Tratas bem o teu irmão!</span><br />
<span><b>-- Se</b></span><span><b> </b>for mentira, a mãe verá. A chave não está cá na cozinha... É só ir ver!</span><br />
<span><b>A </b></span><span>mãe hesitou. Os olhos faiscavam-lhe mas Dores desafiava-a com um sorriso de maldade:</span><br />
<span><b>-- É</b></span><span> só ir ver!</span><br />
<span><b>D.</b></span><span><b> </b>Quitéria pegou no candeeiro e abriu a porta da cozinha. Com os socos, a longas passadas, atravessou o quinteiro. A filha seguia atrás.</span><br />
<span><b>A</b></span><span> adega estava aberta. De dentro saíram vozes avinhadas:</span><br />
<span><b>-- É</b></span><span><b> </b>Quinzinho! Isso é que é ser valente! Mais uma caneca!</span><br />
<span><b>Quando</b> </span><span>ela entrou, o filho tombava sobre uma pipa e uma golfada de vinho sujava as aduelas.</span><br />
<span><b>D. </b></span><span>Quitéria</span><span> parou, enquanto os seus sonhos se debatiam com o que tinham diante dos olhos.</span><br />
<span><b>Atrás,</b></span><span> a Dores tinha um sorriso zombeteiro e triste ao mesmo tempo.</span></span><br /><br /></span>
<br />
<br /><div style="text-align: right;"><strong style="text-align: left;">Manuel Amaral, <em>Terra Lavrada</em>, Amarante, edição do Autor, 1953, pp., 5-9.</strong></div>
</div><div align="justify"><b><br /></b>
<b>Nota - O tópico da matriarca é sempre interessante, mesmo que muito explorado. É a amargurada Dores, a figura que mais me impressiona neste conto.</b></div>
<br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh2A6_sTj4PPX4zuS8lXBucZEW-oqjy60N9xeO2uK8NUa7_IJ-d9scTrbDl1StDqv0k_ToqradM5rVsee3t3SeV1X6AWmNaMWHSOlhzYJctpxF_zqqmdbEAvZbu5lBaunj0gGwfNOu65nrq/s1600/ManuelAmaral-TerraLavrada.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh2A6_sTj4PPX4zuS8lXBucZEW-oqjy60N9xeO2uK8NUa7_IJ-d9scTrbDl1StDqv0k_ToqradM5rVsee3t3SeV1X6AWmNaMWHSOlhzYJctpxF_zqqmdbEAvZbu5lBaunj0gGwfNOu65nrq/s400/ManuelAmaral-TerraLavrada.jpg" width="278" zva="true" /></a></div>
<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-33301946067649614742016-06-21T18:56:00.003+01:002021-02-24T12:11:54.078+00:00#7 - O CONCURSO (Miguel Barbosa, 1925-2019)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjq9cKPIq0BQ5XxA5zq13V6Khn7Tp-MG2lkgNWK_A8_m7s9e1ylwMSTileWwUCQ7M3so3-HY-xuNfDqQ3ZSupSbr4QhdwcK5GUeoHTqkzQA5FQlyvNrJfcQCFS0kGa8aVwz0SIAgwqxB6Pl/s1600/MiguelBarbosa.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjq9cKPIq0BQ5XxA5zq13V6Khn7Tp-MG2lkgNWK_A8_m7s9e1ylwMSTileWwUCQ7M3so3-HY-xuNfDqQ3ZSupSbr4QhdwcK5GUeoHTqkzQA5FQlyvNrJfcQCFS0kGa8aVwz0SIAgwqxB6Pl/s200/MiguelBarbosa.jpg" width="200" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: times; font-size: medium;"><span><span><b>Minha</b> </span><span>mulher acordou</span></span><span> cedo. Dizia com ar ansioso:</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: times; font-size: medium;"><span><b>-- Achas</b></span><span> que estará doente? Terá dormido bem? Ontem vi-lhe os olhos tão vermelhos...</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: times; font-size: medium;"><span><b>Como</b> </span><span>resposta, virei-me para o outro lado e tentei adormecer de novo. Ela afastou os lençóis, a tremer de frio. Apesar dos olhos fechados, seguia-lhe os gestos um a um. O costume. Parara em frente do berço. Ouvi-lhe o grito de aflição.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: times; font-size: medium;"><span><b>-- Não</b> </span><span>está cá!</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: times; font-size: medium;"><span><b>Larguei</b></span><span> uma praga e tapei a cabeça com o travesseiro. Não podia com aquela lulu de ossos moles e pernas atrofiadas de tanto andar ao colo. Mais me parecia um molusco do que um vertebrado. Desprezava-a por se ir deitar no berço que eu comprara nos primeiros tempos de casado, quando tinha planos de constituir uma enorme família. O vê-la no berço punha-me doente, sabia-me a demasiada ironia.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: times; font-size: medium;"><span><b>Minha</b></span><span> mulher achou-a debaixo da cama e pôs-se a penteá-la demoradamente. Ficaria melhor assim ou com a franjinha na testa!... Rematou a obra da manhã com um lacinho vermelho ao pescoço.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: times; font-size: medium;"><span><b>-- Está</b></span><span><b> </b>um amor. Não achas, querido, que vamos ganhar?</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: medium;"><span style="font-family: times;"><span><b>Repliquei-lhe</b></span><span><b> </b>que, se os membros do júri fossem cães, não ganhávamos com toda a certeza. Levantei-me, atirei com a porta casa de banho e fechei-me por dentro. Lá vinha de novo a ideia do suborno. «Por que não me informava do nome dos membros do júri e usava de influências?...»</span><br />
<span><b>Estava</b></span><span> dentro da banheira quando tocou a campainha da porta da rua. Adivinhei quem era. Ou a </span><i>manucure </i><span>para arranjar as unhas da cadela, ou a gorda vizinha, também concorrente, e que trazia alguma novidade. Verificou-se a segunda hipótese. Ouvia o ruído dos beijos. A gorda senhora lamentava-se. O seu fox-terrier, que tantas probabilidades tinha de ganhar, estava com dores de barriga.</span><br />
<span><b>Sentia</b></span><span> certa alegria na voz de minha esposa.</span><br />
<span><b>-- Já</b></span><span> experimentou as massagens com leite quente?</span><br />
<span><b>-- Sim.</b> </span><span>Até já chamei o veterinário.</span><br />
<span><b>-- Tinha</b> </span><span>tantas esperanças! E depois, nunca contei isto a ninguém, o </span><i>Toby </i><span>já não é nenhuma criança. Está a perder pelo...</span><br />
<span><b>Ardia</b></span><span> em desejos de abrir a porta da casa de banho, atravessar nu a sala, e vir também dar à vizinha o meu apoio nestas horas más.</span><br />
<span><b>Partiu </b></span><span>debulhada em lágrimas. Minha mulher apressou-se a queimar desinfectante, não fosse ela ter trazido consigo o gérmen da doença e contagiar a nossa cadela.</span><br />
<span><b>-- O</b></span><span><b> </b>grande concurso abriu em manhã de sol radiante. Chegámos meio ensonados -- não tínhamos dormido a vigiar a lulu -- ao parque do Jardim Zoológico.</span><br />
<span><b>Via</b></span><span> o ar triste e aborrecido de centenas de cachorros, enjaulados, à espera da hora, ofendidos na sua dignidade. Tinham marcado o lugar da nossa cadela, que cheirava aflitivamente a perfume e a pó de arroz, entre dois enormes lobos de Alsácia. Minha mulher queria que eu fosse protestar perante o júri..</span><br />
<span><b>-- É </b></span><span>um ultraje, dizia ela. Tenho medo de que a lulu, tão pequenina no meio de cães tão grandes, arranje algum complexo de inferioridade.</span><br />
<span><b>Recusei-me</b> </span><span>a partir, e ela foi apresentar as suas objecções. Reparei então num rafeiro, sarnoso, extra concurso, que passava em frente da jaula da lulu. Examinava-a com olhos meigos enquanto se coçava. Nem se atrevia a ladrar. Tinha o ar de quem contempla a mais inacessível das criaturas, um sonho que sabe de antemão irrealizável...</span><br />
<span><b>Começara</b></span><span><b> </b>o desfile. Passavam belezas em vestidos ultra-vaporosos, a sorrir perturbadormente ao júri.</span><br />
<span><b>Minha</b></span><span><b> </b>mulher regressava. Não conseguira nada e vinha furiosa. Perto de nós, um sujeito elegante batia no focinho de um cão de raça. Ia entrar a seguir. Erguia-lhe o pequeno coto, mas quando tirava a mão, o animal baixava teimosamente o pouco que lhe restava da cauda. </span><i>Se não ganhar, </i><span>dizia ele para uma vizinha, </span><i>dou-lhe uma injecção e mato-o. Arranjo outro com mais possibilidades para o ano...</i><br />
<span><b>Minha</b></span><span> mulher entrara finalmente. Os olhos do júri prendiam-se às suas ondulações. Nem sequer olhavam para a cadela. Tinha vontade de os esbofetear. A missão deles não era analisar as curvas da minha esposa, mas sim a beleza da lulu...</span><br />
<span><b>Anoitecia</b> </span><span>quando aquilo tudo acabou. Vencera o cão do sujeito elegante. O bicho ganhara, como prémio extra, o direito a mais um ano de vida.</span><br />
<span><b>Começou</b></span><span> o retirar lento dos vencidos, cabeças baixas, orelhas murchas e cauda caída.</span><br />
<span><b>-- Deixa,</b> </span><span>querida, dizia minha mulher, não fiques triste. És a mais linda. Estes parvos é que não te souberam apreciar.</span><br />
<span><b>Juntei-me</b></span><span> ao rafeiro de olhos meigos, que nos seguia silenciosamente. Abaixei-me e fiz-lhe uma festa. Sabia que ele queria constituir família. Tínhamos ambos o mesmo desejo irrealizável.</span></span><br /></span>
<br />
<br /><div style="text-align: right;"><strong>Miguel Barbosa, <em>Retalhos da Vida</em>, Lisboa, edição do Autor, 1955.</strong></div>
<br />
<b>Nota - Uma dama sem vagabundo que lhe(s) sirva, ou a apologia do rafeirismo. Um belo final.</b><br />
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: right;">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjIxVQqd8lmH-xkwfPbCzkGlrpdZ3YXb7LKM-0axOZbHch7MMBDsn1_U_cwpULe6zDqSlObYYQDXgRPCzCj2htIFf-ChyiZnM3taEE3stqOldF_O1259F7A_fp1c2TbdRdcOrZXKAtg-_jv/s1600/MiguelBarbisa-RetalhosDaVida.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjIxVQqd8lmH-xkwfPbCzkGlrpdZ3YXb7LKM-0axOZbHch7MMBDsn1_U_cwpULe6zDqSlObYYQDXgRPCzCj2htIFf-ChyiZnM3taEE3stqOldF_O1259F7A_fp1c2TbdRdcOrZXKAtg-_jv/s400/MiguelBarbisa-RetalhosDaVida.jpg" width="267" zva="true" /></a></div>
</div>
Unknownnoreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-76725636706008524782016-06-16T22:04:00.005+01:002021-02-24T12:10:03.044+00:00#6 - A MOSCA VERDE (Natália Nunes, 1921-2018)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiFSC59YImkboSEgqyEPwXDBoJ3AFgH_pGeTtO578TBsaZSclQHRrrV9WXQy48b67yf01Y5ZBi2zTTlA4PJIGsfYx4U9Ki5_QArxUTHTVcAR4e-APRCrC8Qn2uFveuGXtPmy7rnRkpCLV1B/s1600/NataliaNunes.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiFSC59YImkboSEgqyEPwXDBoJ3AFgH_pGeTtO578TBsaZSclQHRrrV9WXQy48b67yf01Y5ZBi2zTTlA4PJIGsfYx4U9Ki5_QArxUTHTVcAR4e-APRCrC8Qn2uFveuGXtPmy7rnRkpCLV1B/s200/NataliaNunes.jpg" width="172" zva="true" /></a></div>
<div align="justify">
<span style="font-family: helvetica; font-size: medium;"><span><span><b>Não</b></span><span><b> </b>sabia como,</span></span><span> mas o que é certo é que o petiz fora desencantar aquilo ao fundo do armário. E quando ele apareceu a mostrar-lha nas mãozitas, a mãe corou como no dia em que para sempre a tinha escondido.</span></span></div>
<div align="justify">
<span style="font-family: helvetica; font-size: medium;"><b>Para </b>sempre, talvez não. Não tinha sido com esse pensamento que, numa precipitação, ela a ocultara no armário no momento em que a criada lhe veio anunciar uma cliente. E muitas vezes depois ainda se lembarara dela, da mosca verde. Simplesmente não tivera mais coragem de ir buscá-la ao esconderijo, ao canto do segredo. Também nunca fora capaz de a destruir e, pelo contrário, sentia até uma espécie de alegria muito íntima de saber que ela estava ali ao seu dispor, que existia...</span></div>
<div align="justify">
<span style="font-size: medium;"><span style="font-family: helvetica;"><span><b>Mas,</b></span><span><b> </b>com o tempo, acabara por esquecê-la. Havia muitos anos que já nem uma só vez tal recordação passara pelo seu espírito.</span><br />
<span><b>-- Mãe,</b></span><span> olha que linda! Dás-me a mosca verde, dás?</span><br />
<span><b>O</b></span><span><b> </b>filho, sentado no chão, procurava endireitar o arame das asas, desdobrar o tule amarrotado, e enquanto as suas mãozitas insistiam, traças gordas e sedosas escapavam-se do corpo da mosca verde e corriam pelo chão em busca de outro abrigo...</span><br />
<span><b>Na</b> alma da mulher era como se qualquer coisa se fosse desdobrando também e crescesse e procurasse tomar uma forma ampla expansiva e perfeita e, ao mesmo tempo, logo o que quer que era voltava a enroscar-se, a contrair-se e a apertar-se num novelo de pudor e de amargura...</span><br />
<span><b>«Tinha </b></span><span>sido numa tarde, ao pegar num pedaço de </span><em>moirée </em><span>de reflexos acobreados, que ela se lembrara da mosca que poisara um dia no telhado da casa, junto do peitoril da janela. O que tinha encontrado de extraordinário naquela mosca, fora a sua cor verde-vermelha e, depois, o que ela fizera quando abriu as asas! Abriu-as, e elas pareciam pintadas de todas as cores do arco-íris! Abriu-as, e começou na sua frente um bailado de volteios magnéticos, ora calmos e estáticos, ora vertiginosos, alucinatórios...</span><br />
<span><b>Pois</b></span><span> nessa tarde -- já estava casada e já era modista de chapéus e até já tinha o primeiro filho -- bastara-lhe reparar nos reflexos da seda para imediatamente se ver transportada à sua adolescência. E outra vez chegou aquele calor do sol a bater no telhado, o zumbido das moscas, o viço da salsa no caixotinho de madeira, as borboletas brancas e as amarelas -- flores que tinham asas! -- as formigas pequeninas -- donas de casas escondidas sob as telhas -- e o azul do céu e a prata do rio... e a mosca verde a dançar numa fogueira de lumes irisados... E, com isto, o contentamento perfeito de se sentir viva que foi o seu naquela hora, a vertigem reveladora de uma beleza desconhecida que lhe trazia a mosca verde e, por fim, o ímpeto que ela teve de saltar pela janela e de ir para cima do telhado voltejar e adejar, rodopiar e ascender como as borboletas, a mosca verde e a tremulina do rio lá em baixo...»</span><br />
<span><b>Mas</b> isso tinha sido havia já tanto tempo! Doze anos! Tivera realmente aquela hora de fantasia numa tarde de recordações... E ainda dessa vez ela sentira novamente o mesmo impulso de movimentar o corpo pelo espaço em movimentos rítmicos de harmonia! Então, já era uma mulher entregue a uma casa, e portanto, aquilo seria uma vergonha... Ela podia lá pôr-se a bailar pelas salas, envolvida nos tules e nas sedas que serviam para os chapéus!</span><br />
<span><b>Mas</b> tinha sido depois que, num entusiasmo, pegara nos tecidos vaporosos e começara a dar forma à mosca, à maravilhosa mosca verde, mensageira de uma beleza que de longe a chamava e lhe pedia o estender dos braços, o ritmar dos passos, o estremecer do corpo, o fugir da alma...</span><br />
<span><b>E</b></span><span> agora o filho a perguntar-lhe se podia ir brincar com a mosca verde...</span><br />
<span><b>-- Não,</b></span><span> Carlinhos, isso não é para brincar.</span><br />
<span><b>-- Então</b></span><span> isto não é um brinquedo, mãezinha?</span><br />
<span><b>Que</b></span><span><b> </b>tinha ela para responder à criança? Não seria verdade que aquilo fora uma espécie de brinquedo na sua vida? Que representava na sua existência de mulher modesta e quase ignorante, senão uma brincadeira, um motivo de inebriantes sonhos escondidos, aquele impulso de bailar sobre o telhado, e a mosca verde que o recordava? Só sabia que fizera muitos chapéus sem gostar de fazer chapéus. Desde os treze anos -- a idade em que ela vira a mosca verde -- que os pais, seus pobres pais, a tinham posto logo de aprendiza. Depois, aos vinte, casara com um caixeiro que passara a gerente de uma loja de fazendas. E quando vieram os filhos uns atrás dos outros, até os chapéus deixou! A vida era tão monótona, tão insípida, parada e descolorida! E tão confusa também! Porque fizera ela afinal a mosca verde? Porque tivera aquele desejo alado de ir bailar para cima do telhado? Além de tudo mais, a vida era estranha, cheia de enigmas, mas que nem os próprios viventes podiam desvendar...</span><br />
<span><b>E</b></span><span> na sua vida havia alguma coisa que ela não percebia... Uma coisa que, naquele instante em que o filho mirava e remexia no corpo da mosca verde, lhe trazia uma vergonha imensa de si própria e uma vontade melancòlicamente amarga de chorar...</span></span><br /></span>
<br />
<br />
<strong>De <i>A Mosca Verde e Outros Contos </i>(1957); antologiado por João Pedro de Andrade em <em>os Melhores Contos Portugueses</em>, Lisboa, Portugália, 1959, pp. 429-434.</strong></div><div align="justify"><b><br /></b>
<b>Comentário - Um prodígio de sugestão. Uma perplexidade: e uma 'mosca verde'. É como se o interdito (estamos em 1957) o fosse ainda mais pelo elemento repulsivo que é a 'mosca', embora aqui transmutada em símbolo de liberdade, essa liberdade de "voltear" que as mulheres não tinham.</b><br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
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<br /></div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-77730021729093026282016-06-13T13:41:00.003+01:002021-02-24T12:09:22.576+00:00#5 - O AMOR DAS MÃES (Brito Camacho, 1862-1934)<div align="justify">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiTfNHOnwSdCDG6KLBPIIW7qBayMbN-_VF1yIJDGtcFZCW4MkQfhNFwT5aldlhjKXZ_drw9d2ZUGTJSGeh1QARFan2hztE27lr2FXo0TIilfT2wm-LfSGEO8-02wymuBMs_fwgqIlmwAHE/s1600/Brito+Camacho.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><strong><img border="0" data-original-height="400" data-original-width="295" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiTfNHOnwSdCDG6KLBPIIW7qBayMbN-_VF1yIJDGtcFZCW4MkQfhNFwT5aldlhjKXZ_drw9d2ZUGTJSGeh1QARFan2hztE27lr2FXo0TIilfT2wm-LfSGEO8-02wymuBMs_fwgqIlmwAHE/s200/Brito+Camacho.jpg" width="147" /></strong></a></div>
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span><span><span><span><b>Dizia</b></span><span><b> </b>o médico</span></span><span> que não era nada; mas a criança piorava a olhos vistos, a febre queimando-lhe as carninhas tenras, e uma tosse incessante, muito funda, parecendo que lhe rasgava o peito, como se fosse um lâmina! Era o seu único filho, a compensação duma longa vida de trabalho e dores, a esperança dum futuro longínquo, em que havia clarões de gozo. Nem ela sabia como aquilo fora. De repente, como se o tocara um bafejo da peste, o pequeno deixou-se-lhe cair no colo, a encolher-se como quem sente frio, a tiritar como quem tem medo, e logo aquela maldita tosse entrou a rasgar-lhe o peito, como se fosse um punhal, ao mesmo tempo que lhe martelava a cabecinha loira, como sobre uma bigorna.</span></span></span><br />
<span><b>Enquanto</b></span><span> não chegava o médico, fora ela renovar todas as flores do seu oratório, acendendo muitas vezes à Senhora do Rosário, sua madrinha de baptismo, perante a qual ajoelhava todos os dias, com muita fé e devoção. Pedia-lhe agora a vida do seu filho, a salvação do seu Toneco, que ali estava ardendo em febre, a tosse rasgando-lhe o peito, como se fosse um punhal, e nas faces redondinhas umas grandes chapas vermelhas, como dois gigantescos pingos de lacre. Parecia-lhe que a sua Madrinha descerrava os lábios, a dizer-lhe boas palavras, e, como fechasse os olhos, num grande movimento de concentração, ia jurar que tinha sentido sobre a sua cabeça pendida, a mãozinha branca da Santa, a significar-lhe que tivesse esperança.</span><br />
<span><span><b>Dizia </b></span></span><span>o médico que não era nada; e efectivamente desaparecera aquela febre que escaldava o seu Toneco, como num banho de enxofre derretido; cessara aquela maldita tosse que lhe rasgava o peito, como se fosse um punhal, e das faces emagrecidas tinham-se apagado aquelas chapas vermelhas, que eram como dois grande pingos de lacre, ou duas gotas de sangue, muito quente e muito vivo. Aquilo não era nada; o sofrimento cessara... porque também cessara a vida.</span><br />
<span><span><b>Apagou</b> </span></span><span>as velas do oratório e, quando atirava para o quintal as flores e a sua Madrinha, pareceu-lhe que se descerravam os lábios da Santa, como num gesto de súplica. Fechou a janela, com força, e, deixando cair os olhos, cheios de lágrimas, sobre o pequenino leito vazio, ficou-se a considerar a impossibilidade de terem crenças as mães que perdem os filhos.</span></span><br />
<br /><div style="text-align: right;"><b style="text-align: left;"><a href="http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_de_Brito_Camacho">Brito Camacho</a>, <em>Contos e Sátiras</em>, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1929.</b></div>
<br />
<b>Nota - Líder político republicano histórico (a União Republicana ou Partido Unionista), em contraponto ao Partido Democrático de Afonso Costa e ao Evolucionista, de António José de Almeida. Talvez o mais interessante dos três, por menos conhecido). Escritor de obra vasta e, como é hábito, negligenciada, este seu conto duma <em>pietà </em>que não se aceita tal, pode muito bem ter sido um retalho de vida do médico que ele também foi.<br /></b>
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhSGHmZB7TIOShCdmAdcnD4ChCUm_9a3AqweduMbob3dtc1Rh7KQ8N-9jE-sVwV7cWB5JON3aGDOK5-NOznruAQKCxw_K9M6X4ZALuKM106u_ejQx1guLB70UiMGznFwIbO__ukZ8ZIoP-e/s1600/BritoCamacho-ContosESatiras.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhSGHmZB7TIOShCdmAdcnD4ChCUm_9a3AqweduMbob3dtc1Rh7KQ8N-9jE-sVwV7cWB5JON3aGDOK5-NOznruAQKCxw_K9M6X4ZALuKM106u_ejQx1guLB70UiMGznFwIbO__ukZ8ZIoP-e/s400/BritoCamacho-ContosESatiras.jpg" width="246" zva="true" /></a></div>
</div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-78590354615707073622016-06-12T02:24:00.004+01:002021-02-24T12:08:39.192+00:00#4 - REMORSO (António Botto, 1897-1959)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi_OTGV0f-6jz493RfbwCkF_q3BsbYzdkYTev0RRaNiJcRLCY6phxulYDwxSbGUl73LLXlD9N1H7i8qClcvlwaOlhMd_ws5H7R6C1HTR2y6MVIhm3plEsUJhhFZVSgBNglgbY3eO4Q_bhjG/s1600/botto.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="200" psa="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi_OTGV0f-6jz493RfbwCkF_q3BsbYzdkYTev0RRaNiJcRLCY6phxulYDwxSbGUl73LLXlD9N1H7i8qClcvlwaOlhMd_ws5H7R6C1HTR2y6MVIhm3plEsUJhhFZVSgBNglgbY3eO4Q_bhjG/s200/botto.jpg" width="131" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: georgia; font-size: medium;"><span><span><b>O</b></span><span> céu de</span></span><span> súbito pôs-se negro e o vento à solta, parecia querer derrubar montes, castelos e vidas. -- Eduardo, meu filho! gritou a mãe. E o pequeno que deixara de brincar, cego pela poeira e assustadíssimo pelo brusco desaparecimento da luz do sol, deitou a correr para casa. Batia-lhe de frente a ventania dificultando-lhe a corrida. Um remoinho de folhas secas ergueu-se, descompassado. Eduardo, chegou. -- Mas, vens a tremer, meu filho? -- Sim, minha mãe, tenho frio. E com efeito nessa manhã suavíssima de outono o vento fez-se cortante como nos dias baços, chuvosos, e doentios de Janeiro. Eduardo, a pouco e pouco, ia ficando tranquilo. Entretanto, o vento, numa lamúria desgrenhava as árvores, partindo-as, e a chuva, torrencial, dava-nos a impressão de alagar o Universo. Os relâmpagos iluminavam a terra e o céu. A casa estremecia e algumas telhas abalavam como flechas pelos ares. -- Não tenhas medo, meu filho. Deus protege o nosso ninho. Eduardo, então, desatou a chorar, e por mais que a mãe lhe perguntasse a causa daquele choro, não respondia, e sempre a chorar, lembrava-se, com certeza, do ninho de passarinhos que destruíra nessa manhã.</span></span><br />
<br /><div style="text-align: right;"><strong><em>Os Contos de António Botto</em>, 7.ª ed., Lisboa, Livraria Bertrand, s.d., pp. 25-26).</strong></div>
<br />
<b>Nota - Um relampejar extremamente conseguido, em concisão e dramatismo.</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br />
<span style="font-size: x-small;"><br /></span>
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg4nSPoFYmIO375dcq8aJEjKL0ZduCZkUTsuu2SKjrijlN87zWAhiMwh8EB_vmD0n9UU-y1Jw74wSo2YaMJCbOEAzVEXBpjGxNW-4wPQPjizDrlTUCm1BulbJi4Dj1ZJNUTl3YKVVTrzWPX/s1600/OsContosDeAntonioBotto.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg4nSPoFYmIO375dcq8aJEjKL0ZduCZkUTsuu2SKjrijlN87zWAhiMwh8EB_vmD0n9UU-y1Jw74wSo2YaMJCbOEAzVEXBpjGxNW-4wPQPjizDrlTUCm1BulbJi4Dj1ZJNUTl3YKVVTrzWPX/s400/OsContosDeAntonioBotto.jpg" width="258" /></a></div>
<span style="font-size: x-small;"><br /></span></div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-14702877343897390572016-06-09T00:37:00.005+01:002021-02-24T12:07:59.959+00:00#3 - VILA D'ARCOS (Sophia de Mello Breyner Andresen, 1919-2004)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgSkCWmlM-Rqqn3MGfgfqLeXGimFUU8pAsw26oMkzn4Fh89zXMJWmSreivLKTnB63inWDqKo3Ly0xnHEjp_zs3fyKyxaij8eFecbPkgdf0OhEKbz_GYOpprBXXIOHKUbJ4Ne6VKqCtZvPA/s1600/Sophia_de_Mello_Breyner_Andresen_-_por_Eduardo_Gageiro_1964_2.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><strong><img border="0" data-original-height="150" data-original-width="200" height="150" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgSkCWmlM-Rqqn3MGfgfqLeXGimFUU8pAsw26oMkzn4Fh89zXMJWmSreivLKTnB63inWDqKo3Ly0xnHEjp_zs3fyKyxaij8eFecbPkgdf0OhEKbz_GYOpprBXXIOHKUbJ4Ne6VKqCtZvPA/s200/Sophia_de_Mello_Breyner_Andresen_-_por_Eduardo_Gageiro_1964_2.jpg" width="200" /></strong></a></div>
<span style="font-family: courier; font-size: medium;"><span><span><b>Vila</b></span><span><b> </b>d'Arcos fica</span></span><span> ao Norte, um pouco para Leste, numa região de montanhas. É uma cidade de província e pequena com ruas empedradas em torno da catedral enorme como um navio de eternas viagens. As suas casas antigas -- nobres mesmo quando pobres -- são proporcionadas com justeza desde o degrau da escada até ao quadrado da janela, desde a balaustrada da varanda até à superfície da parede de granito sem reboco onde só a pedra de armas com arruelas, grifos e leões é grande demais sobre os ferros e as madeiras desconjuntadas da porta; como se no mundo em que estamos nada importasse, nem o frio do granito, nem a estreiteza sombria dos quartos, nem a pobreza monótona dos dias, mas só importasse a nobreza que mostramos à luz e que é o projecto da nossa alma.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: courier; font-size: medium;"><span><b><span>É</span><span> </span></b></span><span>uma cidade antiga onde estagnada se desagrega e se dissolve lentamente uma vida desvivida gesto por gesto, sílaba por sílaba.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: courier; font-size: medium;"><span><b><span>Os</span><span> </span></b></span><span>carros gemem ao longo das ruas empedradas. Passam poucos homens e rápidas mulheres vestidas de preto e em Maio as roseiras florescem nos muros que o Inverno cobriu de musgo. Por trás da portada verde da pequena janela da casa de esquina uma mulher de olhos agudos, muito juntos e castanhos, vê tudo, sábia e arguta, terrivelmente atenta, como se o seu olhar lesse e amparasse o desacontecer das coisas. Há jardins imprevistos, mais subtis e complexos do que o imaginável, onde crescem altas magnólias, com grandes flores brancas de pétalas profundas e largas, macias e espessas e onde a água de prata que irrompe da boca dos golfinhos de pedra cai nos pequenos tanques oitavados. Jardins de buxo, camélias e violetas perfumados de contemplação e paixão, de esquecimento e silêncio. Jardins docemente abandonados a uma solidão dançada pelas brisas, enquanto um longo sussurro de adeus acena de folha em folha nos ramos mais altos das árvores. Jardins onde reconhecemos que a nossa condição é não saber. É não poder jamais encontrar a unidade. E encontrar a unidade seria acordar.</span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: courier;"><br /></span></div>
<div style="text-align: right;">
<span style="font-family: courier; font-size: xx-small;"><b>1972</b></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-size: xx-small;"><span style="font-size: xx-small;"><br /></span></span> </div>
<b>Sophia de Mello Breyner Andresen, <em>Histórias da Terra e do Mar</em>, Lisboa, Edições Salamandra, 1984.</b><br />
<br />
<b>Nota - Magistral na concisão e na precisão de cada palavra; uma poética aberta a leituras sobre leituras, alegoria da vida e sobrevida esperada.</b><br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhrTzliH1nVbomUt3oK78TEECFVFXPFtzLwvyr2fzctV6Lj5EAUP_LOU91CX_dunhOESt481Wz59pmqe4FWJKr4E7phL8mQaf5AcYqYsuNydsgVpXTTqk6RZdOisjikSnebAaMeAzmNzmhl/s1600/SophiaDeMelloBreynerAndresen-HistoriasDaTerraEDoMar.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhrTzliH1nVbomUt3oK78TEECFVFXPFtzLwvyr2fzctV6Lj5EAUP_LOU91CX_dunhOESt481Wz59pmqe4FWJKr4E7phL8mQaf5AcYqYsuNydsgVpXTTqk6RZdOisjikSnebAaMeAzmNzmhl/s400/SophiaDeMelloBreynerAndresen-HistoriasDaTerraEDoMar.jpg" width="281" /></a></div>
<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-72297450265680234582016-06-07T19:51:00.005+01:002021-02-24T12:07:07.728+00:00#2 - AS MÃOS (Júlio Dantas, 1876-1962)<br />
<div style="color: black; font-size-adjust: none; font-stretch: normal; letter-spacing: normal; text-align: center; text-indent: 0px; text-transform: none; white-space: normal; word-spacing: 0px;">
</div>
<br />
<div align="justify" style="color: black; font-style: normal; font-variant: normal; letter-spacing: normal; line-height: normal; text-indent: 0px; text-transform: none; white-space: normal; word-spacing: 0px;">
<div class="separator" style="clear: both; font-family: "times new roman"; font-size: medium; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjvfA6pid0A_J-_oKUnUc3EYqep1NXME3GO9GxG13zRfbVvwOHucG6VdeNqfBTqd4uJGIEiAF5BbXGj7UIzHCNRhlvKZ_oIhKjpCz16NIWvjP47b253uEbQYwRQRUytY8aDPMuDQCdOWYCE/s1600/JulioDantas.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><strong><img border="0" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjvfA6pid0A_J-_oKUnUc3EYqep1NXME3GO9GxG13zRfbVvwOHucG6VdeNqfBTqd4uJGIEiAF5BbXGj7UIzHCNRhlvKZ_oIhKjpCz16NIWvjP47b253uEbQYwRQRUytY8aDPMuDQCdOWYCE/s200/JulioDantas.jpg" width="181" /></strong></a></div>
<div style="margin: 0px;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><span><span><span><b>Maria</b></span><span><b> </b>Júlia acordou</span></span><span> </span><span>em sobressalto. O coração batia-lhe com força. Tinha a testa inundada de suor e frio. A boca sabia-lhe a sangue. Fez um esforço intelectual para reconhecer onde estava. Na escuridão, sentou-se na cama, escutou, tacteou. As suas mãos encontraram uma massa morna, gelatinosa, arquejante. Era um homem. Era o seu companheiro de acaso naquela noite. Na</span><span> </span></span><span>torre de S. Paulo bateram as três da madrugada. Um cheiro acre a palha e a bafo sufocou-a. Dormia, mais uma vez, na hospedaria da Rua do Carvalho, tão conhecida já dos seus dois anos de miséria. O calor viscoso daquele corpo fê-la estremecer; sentiu crispar-se-lhe a pele num movimento instintivo de repugnância. Quem seria aquele homem? Mal tivera tempo de o ver. Deixara-lhe a vaga impressão dum casacão amarelo, duma voz rouca, duma barba hirsuta e grisalha, duns braços possantes que a tinham sacudido, apertado, calcado. Ficou uns minutos na treva, a ouvi-lo respirar. Era o ronco brutal e pacífico dum animal que dorme. Imóvel, a respiração quase suspensa, Maria Júlia esperou, com a resignação das abandonadas, que clareasse a manhã. Os lençóis de estopa ardiam-lhe na pele. Zumbiam-lhe os ouvidos. Quis adormecer. Não pôde. Passavam-lhe pela cabeça, num tropel, os horrores da sua vida inteira. Reviveu toda a sua infância aos pontapés; o abandono, o asilo, o hospital, a fome; a mãe morta, com as veias abertas, numa poça de sangue; o pai embarcado para o Brasil quando ela tinha sete anos; os vizinhos a gritarem-lhe no pátio: -- «Manuel da Cruz, tenha dó da criança, que é sua filha!»; -- e na escuridão, na imobilidade, no silêncio, adivinhando cada vez mais vivo, mais mordente o calor daquele corpo desconhecido, Maria Júlia sentia as lágrimas a escaldarem-lhe a cara, o peito a arquejar-lhe com força, e toda a cama tremia já do arranco dos seus soluços. A obscuridade oprimia-a; a cabeça andava-lhe à roda; vacilou, numa vertigem; acendeu a luz. O homem dormia serenamente, de costas, a barba empastada de suor, o arcaboiço largo arfando numa camisola velha de mescla azul, a mão direita espalmada sobre o peito. Maria Júlia levantou a vela, debruçou-se, observou-o -- estremeceu. Os olhos fixaram-se-lhe, redondos de pavor, naquela mão espessa, maciça, enorme, queimada de tabaco, eriçada de pêlos ruivos, onde brilhava um anel de prata. Cambaleou. Dominou-se, para não gritar. Tinha conhecido, na sua infância, umas mãos assim. A tremer, aproximou a luz da cara do homem -- e olhou-o, e fitou-o ansiosamente. Uma expressão de dúvida horrível crispou-lhe as feições. Seria ele? Não seria ele? Num lampejo, pensou em tudo -- em sacudi-lo, em acordá-lo, em fugir, em gritar, em esmigalhar a cabeça de encontro às paredes. Num esforço de todas as suas reminiscências infantis, olhou ainda, uma vez mais, aquela mão musculosa, ruiva, felpuda, possante como uma pata de fera. Queria saber, queria ter a certeza. Atirou-se para os pés da cama. O sangue ardia-lhe nas faces. Perdida, ofegante, travou das roupas do homem -- revolveu-as, rebuscou-as, despedaçou-as. Achou uma carta, um sobrescrito com um nome. Abriu os olhos, fitou esse papel mudo onde estava escrita a sua sentença. Não sabia ler. Numa angústia, num desespero, sustendo a respiração, calçou-se, vestiu-se, atou o lenço, embrulhou-se no xaile -- e, com os dedos fincados na carta, desceu a escada de roldão. Era madrugada. Uma lufada de ar fresco bateu-lhe na cara. Na rua, a luz azulada da manhã alastrava como uma névoa. Maria Júlia correu a um polícia, que cabeceava encostada a um candeeiro ainda aceso, e pálida, opressa, mal podendo falar, pediu-lhe que lesse o nome escrito naquele papel. O guarda encarou-a, viu a carta e leu:</span></span></div>
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<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><span><b>-- Manuel</b></span><span> da Cruz.</span></span></div>
<div style="margin: 0px;">
<span style="font-family: arial; font-size: medium;"><span><b>Diante</b></span><span> dele, Maria Júlia caiu sem um grito, como um corpo morto.</span></span></div>
<div style="font-family: "times new roman"; margin: 0px;">
<span style="font-size: medium;"><br /></span></div>
<div style="font-family: "times new roman"; margin: 0px;">
<b><br /></b>
<b>De <em>Mulheres </em>(1916); antologiado por João Pedro de Andrade em <em>os Melhores Contos Portugueses</em>, Lisboa, Portugália, 1959, pp. 79-83.</b></div>
<div style="font-family: "times new roman"; font-weight: normal; margin: 0px;">
<br /></div>
<div style="font-family: "times new roman"; margin: 0px;">
<b>Nota - Conto de um naturalismo já tardio, mas nem por isso mais artificioso, com fatal e esperável desenlace. Gosto do ritmo da prosa, períodos curtos, jornalísticos. Muito boa a descrição do brutal, mas pacificado, Manuel da Cruz.</b><br />
<br />
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjf4jyN5Lg22XqIR2C5CfiyEzRycKxUF5V6SVwWlpqZO4Zpeu3cQDi6nHlIjotOLmgR25PgynqxV1Ehd1JOeca9LkAy41BCPdjr15NG-kXaF0hc0AFHZWHA0dluGl0Jwzs2enngTHwA9k9N/s1600/JulioDasntas-Mulheres-1916.JPG" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjf4jyN5Lg22XqIR2C5CfiyEzRycKxUF5V6SVwWlpqZO4Zpeu3cQDi6nHlIjotOLmgR25PgynqxV1Ehd1JOeca9LkAy41BCPdjr15NG-kXaF0hc0AFHZWHA0dluGl0Jwzs2enngTHwA9k9N/s320/JulioDasntas-Mulheres-1916.JPG" width="235" /></a></div>
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Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4899347999785409753.post-66024878956956958762016-06-07T19:47:00.005+01:002021-02-24T12:06:34.536+00:00#1 - O ADEUS AOS FEIJÕES VERDES (Sarah Adamopoulos, 1964)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgwfOZwdDo7DfYyIoPO3kjNPpNJzwYKfEODH-xQMTFnoJK8SrD7CmUqXtW1EPOH6mwSPojX-7s9DWb7A2wiFBCmKHeB9tPq_ipFWeful0_6kTAD2jA5zKD6bNHVDYBWGc4waH01BxbeZSk/s1600/SarahAdamopoulos.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><strong><img border="0" data-original-height="160" data-original-width="160" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgwfOZwdDo7DfYyIoPO3kjNPpNJzwYKfEODH-xQMTFnoJK8SrD7CmUqXtW1EPOH6mwSPojX-7s9DWb7A2wiFBCmKHeB9tPq_ipFWeful0_6kTAD2jA5zKD6bNHVDYBWGc4waH01BxbeZSk/s200/SarahAdamopoulos.jpg" width="200" /></strong></a></div>
<span><span><span style="font-family: inherit;"><span><span style="font-size: medium;"><b>Um</b></span><span><b><span style="font-size: medium;"> </span></b><span style="font-size: medium;">dia mudou</span></span></span> <span style="font-size: medium;">tudo. Ela enchia-lhe a vida de sonhos e recebia on the road em troca. Ele enchia-lhe a vida de loucura e recebia aventura em troca. Era mais ou menos assim. Era fair enough. Era bom. Era partir. Ela gostava disso. De partir. Partia por vocação. O problema era quando o caminho chegava ao fim. Mesmo quando a estrada continuava. O fim do caminho era quando ele decidia que o melhor era transportar os sonhos para casa. O problema era que ele não sabia o que fazer com eles em casa. Por isso, havia sempre um dia que ele os empilhava em cima dos livros e ela os deitava então para o lixo. Ela deitava os sonhos fora para que eles não ficassem a apanhar pó. É que mesmo que ele limpasse o pó e os acariciasse relembrando os dias em que os resgatara, de nada servia porque ela não gostava de os ver amontoados entre livros, catálogos de exposições e objectos vários a amarelecer.</span></span></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><br /></span></div>
<div style="text-align: center;"><span style="font-family: inherit; font-size: medium;">
»»»»»»»»»»»»»»»»»»</span></div>
<div style="text-align: center;">
<span style="font-family: inherit; font-size: medium;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: inherit;"><span style="font-size: medium;">Ele<b> </b></span><span style="font-size: medium;">queria um filho. Ele queria um filho. Ele queria um filho. Ele queria um filho. Ele queria um filho. Vou fazer-te um filho. Mas eu não quero um filho. Mas eu preciso dum filho. Então manda vir. Mas eu quero um filho teu. Ou contigo. Ou qualquer coisa assim. Eu quero um filho. Então faz um. Mas um filho não se faz sozinho. Pois não. Faz-se com uma mulher que quer ter um filho. Dá-me um filho. Não. Então ele começou a beber. Quer dizer, a beber mais do que o habitual.. Bebia vodka pura gelada. Quando ela chegava, punha uma voz e uns trejeitos de Jack Nicholson e perguntava-lhe se era ela ou a cona dela que o tinha ido visitar. E depois começou a pintar filhos. Pegava em telas minúsculas e desenhava uma espécie de feijões verdes, ou camarões, ou talvez fosse mais parecido com cavalos marinhos. O atelier ficou cheio de telinhas, com aqueles filhos em começo de gestação. Parecem uns feijões verdes. mas não são verdes. pois não, são pretos. Pois, mas é que têm a forma dos feijões verdes. São os meus embriões. Só têm oito semanas. Adeus, vou-me embora. Não vás. Fica. Porquê? Porque eu gostava que ficasses. Adeus. Adeus! / Não afastes os teus olhos / dos meus !</span><br />
<br />
<span style="font-size: x-small;"><b><br /><div style="text-align: right;"><b>Sarah Adamopoulos, <i>A Vida Alcatifada</i>, Lisboa, Fenda, 1997.</b></div></b></span>
<b><br />
Nota - Retrato desapiedado e irónico dum impasse conjugal. Gosto desta escrita desenvolta e rápida, mas nunca superficial, a mulher por cima.</b></span><br />
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<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjTg3MmRaN88U0PHRz2wRzX7Rma5lYQAiKCQOOfIMF3fYzPO8JMEp76cpiNxtDCSWdSKnOnOcceXUzXBAY1IoxTu49lh6yuTEoKe_K9ZZbWqMwGUWbv_UepIed-kgdBFCMtY87uH3TyUFDM/s1600/SarahAdamopoulos-AVidaAlcatifada.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjTg3MmRaN88U0PHRz2wRzX7Rma5lYQAiKCQOOfIMF3fYzPO8JMEp76cpiNxtDCSWdSKnOnOcceXUzXBAY1IoxTu49lh6yuTEoKe_K9ZZbWqMwGUWbv_UepIed-kgdBFCMtY87uH3TyUFDM/s400/SarahAdamopoulos-AVidaAlcatifada.jpg" width="255" /></a></div>
<br /></div>
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