terça-feira, 21 de junho de 2016

#7 - O CONCURSO (Miguel Barbosa, 1925-2019)

Minha mulher acordou cedo. Dizia com ar ansioso:
-- Achas que estará doente? Terá dormido bem? Ontem vi-lhe os olhos tão vermelhos...
Como resposta, virei-me para o outro lado e tentei adormecer de novo. Ela afastou os lençóis, a tremer de frio. Apesar dos olhos fechados, seguia-lhe os gestos um a um. O costume. Parara em frente do berço. Ouvi-lhe o grito de aflição.
-- Não está cá!
Larguei uma praga e tapei a cabeça com o travesseiro. Não podia com aquela lulu de ossos moles e pernas atrofiadas de tanto andar ao colo. Mais me parecia um molusco do que um vertebrado. Desprezava-a por se ir deitar no berço que eu comprara nos primeiros tempos de casado, quando tinha planos de constituir uma enorme família. O vê-la no berço punha-me doente, sabia-me a demasiada ironia.
Minha mulher achou-a debaixo da cama e pôs-se a penteá-la demoradamente. Ficaria melhor assim ou com a franjinha na testa!... Rematou a obra da manhã com um lacinho vermelho ao pescoço.
-- Está um amor. Não achas, querido, que vamos ganhar?
Repliquei-lhe que, se os membros do júri fossem cães, não ganhávamos com toda a certeza. Levantei-me, atirei com a porta casa de banho e fechei-me por dentro. Lá vinha de novo a ideia do suborno. «Por que não me informava do nome dos membros do júri e usava de influências?...»
Estava dentro da banheira quando tocou a campainha da porta da rua. Adivinhei quem era. Ou a manucure para arranjar as unhas da cadela, ou a gorda vizinha, também concorrente, e que trazia alguma novidade. Verificou-se a segunda hipótese. Ouvia o ruído dos beijos. A gorda senhora lamentava-se. O seu fox-terrier, que tantas probabilidades tinha de ganhar, estava com dores de barriga.
Sentia certa alegria na voz de minha esposa.
-- Já experimentou as massagens com leite quente?
-- Sim. Até já chamei o veterinário.
-- Tinha tantas esperanças! E depois, nunca contei isto a ninguém, o Toby já não é nenhuma criança. Está a perder pelo...
Ardia em desejos de abrir a porta da casa de banho, atravessar nu a sala, e vir também dar à vizinha o meu apoio nestas horas más.
Partiu debulhada em lágrimas. Minha mulher apressou-se a queimar desinfectante, não fosse ela ter trazido consigo o gérmen da doença e contagiar a nossa cadela.
-- O grande concurso abriu em manhã de sol radiante. Chegámos meio ensonados -- não tínhamos dormido a vigiar a lulu -- ao parque do Jardim Zoológico.
Via o ar triste e aborrecido de centenas de cachorros, enjaulados, à espera da hora, ofendidos na sua dignidade. Tinham marcado o lugar da nossa cadela, que cheirava aflitivamente a perfume e a pó de arroz, entre dois enormes lobos de Alsácia. Minha mulher queria que eu fosse protestar perante o júri..
-- É um ultraje, dizia ela. Tenho medo de que a lulu, tão pequenina no meio de cães tão grandes, arranje algum complexo de inferioridade.
Recusei-me a partir, e ela foi apresentar as suas objecções. Reparei então num rafeiro, sarnoso, extra concurso, que passava em frente da jaula da lulu. Examinava-a com olhos meigos enquanto se coçava. Nem se atrevia a ladrar. Tinha o ar de quem contempla a mais inacessível das criaturas, um sonho que sabe de antemão irrealizável...
Começara o desfile. Passavam belezas em vestidos ultra-vaporosos, a sorrir perturbadormente ao júri.
Minha mulher regressava. Não conseguira nada e vinha furiosa. Perto de nós, um sujeito elegante batia no focinho de um cão de raça. Ia entrar a seguir. Erguia-lhe o pequeno coto, mas quando tirava a mão, o animal baixava teimosamente o pouco que lhe restava da cauda. Se não ganhar, dizia ele para uma vizinha, dou-lhe uma injecção e mato-o. Arranjo outro com mais possibilidades para o ano...
Minha mulher entrara finalmente. Os olhos do júri prendiam-se às suas ondulações. Nem sequer olhavam para a cadela. Tinha vontade de os esbofetear. A missão deles não era analisar as curvas da minha esposa, mas sim a beleza da lulu...
Anoitecia quando aquilo tudo acabou. Vencera o cão do sujeito elegante. O bicho ganhara, como prémio extra, o direito a mais um ano de vida.
Começou o retirar lento dos vencidos, cabeças baixas, orelhas murchas e cauda caída.
-- Deixa, querida, dizia minha mulher, não fiques triste. És a mais linda. Estes parvos é que não te souberam apreciar.
Juntei-me ao rafeiro de olhos meigos, que nos seguia silenciosamente. Abaixei-me e fiz-lhe uma festa. Sabia que ele queria constituir família. Tínhamos ambos o mesmo desejo irrealizável.



Miguel Barbosa, Retalhos da Vida, Lisboa, edição do Autor, 1955.

Nota - Uma dama sem vagabundo que lhe(s) sirva, ou a apologia do rafeirismo. Um belo final.


2 comentários:

  1. Delicioso!
    O júri terá ouvido o comentário do sujeito elegante, e talvez, também, por as ondulações da dona da Lulu serem fracas ou inacessíveis, decidiram-se pelo cão de raça, concedendo-lhe mais um ano de vida...

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