sexta-feira, 7 de maio de 2021

#18 - A VINGANÇA DE D. PEDRO (Antero de Figueiredo, 1866-1953)


 

Nos paços reais de Santarém, D. Pedro esperava, impaciente, a chegada dos fidalgos criminosos. Mais de uma vez o rei passeara pela cortina do nascente e subira à torre albarrã, alongando a aguçada e sôfrega vista por cima de Almeirim, das lezírias do Ribatejo -- para além, muito para além, para as bandas de Avis, de Barbacena, de Elvas, de Badajoz, em ânsia exasperada.

Uma tarde, chegaram os presos. D. Pedro, que os esperava, tinha comido de festa; mas, mal recebeu o aviso, levantou-se da mesa com a boca cheia, mastigando viandas, atirou-se pelas escadas abaixo e correu ao encontro deles, à praça, no meio do povo curioso que, sempre engrossando, numa atordoadora vozearia, os vinha seguindo desde a Ribeira. Álvaro Gonçalves e Pero Coelho chegavam exaustos, envelhecidos, rotos, cobertos de pó e adobadas as mãos e os pescoços com uma soga de boi. D. Pedro, não vendo o Pacheco, e sabendo, instantes depois, porque não vinha, mordeu os dedos de raiva; mas, voltando-se para os outros, depois de os mirar de alto a baixo, com olhar voluptuoso e sarcástico, logo principiou a cascalhar um diabólico riso de contentamento e de escárnio, muito enganzarado, às vezes ganindo, gesticulando em desordem, batendo nervosas palmas, saltando diante deles, fazendo torcidas piruetas, convulsamente, como se de súbito o agitasse um violento ataque do mal de São Vito. Queria falar e não podia. A voz pregava-se-lhe na garganta, e, com a boca escancarada e a face contraída, fazia esgares de doente e de saltimbanco.

Espantosa explosão de epiléptica alegria a desse apaixonado coração vingativo que, dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, durante anos, suspirou por esse delicioso momento de feroz revindita!

Em pé, cobertos de pó, sem coifa, com os saios esfarrapados, os pés peados e sangrentos, as mãos atadas atrás das costas, as caras terrosas e os cabelos embranquecidos, na cinta a escarcela vazia de dinheiro e de punhal; -- em pé, os fidalgos portugueses esperavam altivos, fitando sobranceiramente os olhos nos olhos do rei. D. Pedro, sempre a rir, numa agitação crescente, aproximou-se mais deles, pôs-lhes violentamente as mãos nos ombros, agarrou-os, sacudiu-os, e, com a cara em cima da cara, ora de um ora de outro, os olhos em fogo e em fúria, os dentes cerrados, silvou-lhe no auge da cólera:

-- Assassinos!

Depois, começou a fazer-lhes perguntas sobre perguntas, atropeladamente, desmanchadíssimo nos gestos e na voz, aos guinchos, cada vez mais gago, voltando-se ora para o Coelho, ora para o Gonçalves, abanando-os pelos ombros, com os nervosos puxões das suas mãos iradas:

-- Porque mataram Inês? Que conluios houve? Quem mais entrou na conjura? Quem mais? Que era que o rei meu pai tramava contra mim? Onde? Porquê? Matadores! Vamos! Quero saber quem ma matou! Os nomes? Os nomes?

E os fidalgos, em pé, firmes, brilhando nos seus olhos a luz galharda das convicções, olhavam o rei com supremo orgulho -- com a serenidade de quem está absolutamente certo de ter cumprido o seu dever; e, sempre cheios da mais nobre altivez, encaravam de alto no rei e não respondiam. Então, D. Pedro ordenou aos da escolta que os pusessem a tormentos, e ele próprio lhes torcia os braços, lhes pinçava a garganta com dedos de ferro, para os obrigar a articular palavras, a falar, a responder; e, cada vez mais enraivecido, com a boca cheia de espuma, repetia as perguntas, aos berros, esganiçado, cuspindo as palavras junto dos rostos, a babar-se, em arremetidas afrontantes, ameaçando-os com os punhos cerrados e trémulos de cólera, num estado de ira apoplética, em que os olhos inchados e rubros, rebolando nas pálpebras encarnadas, pareciam estoirar, e toda a sua figura prestes a explodir. Era um turbilhão! Uma só ideia absorvia o seu ser. O mundo era para ele aquela ideia. Mais nada sentia nem via. Se um trovão rebentasse nos seus ouvidos, não ouviria o som; se o queimassem com um ferro em brasa, não sentiria o fogo.

No atropelo com que falava, não concluía as frases. Atirava com as palavras:

-- Quem mais, quem mais?... Na conjura... Os nomes, os nomes!

Como nada conseguisse dos fidalgos, que, nobilíssimos, nem na morte denunciavam segredos, começou a ultrajá-los com palavras baixas -- as mais desabridas e injuriosas; e, tomando do tagante de pontas de ferro, que sempre trazia à cinta, azorragou com ele, de alto a baixo, a cara do Coelho, que, louco pela dor e pelo enxovalho, cresceu em infernal cólera para o rei, cobrindo-o de insultos:

-- Cobarde! Carniceiro de homens! Vilão ruim! Perjuro! Filho rebelde! Esterco de rei! Que a lepra da maldição te cubra! Algoz! Excomungado! Cobarde!

-- Cobarde, tu, cobardes vós, vilões, que vos não batestes comigo, um homem, cara a cara, cada um com as suas armas e a sua gente, como cavaleiros!

-- Gafo! Cobarde! Assassino! -- vociferava o Coelho.

-- É isto fidalguia?

E os outros, o Coelho e o Gonçalves, em coro, espumando ódio:

-- Vilão! Vilão!

D. Pedro, radiante de os ver sofrer, mofava da sua cólera, e ria destampadamente, saboreando o infinito prazer de lhes prolongar a dor; de repente, encolerizou-se também e começou a bradar:

-- Cala-te, mísero Coelho, que te vou esfolar vivo! Vilão, que sabor tem o teu coração? É a coelho bravo do monte?

E, em paroxismos de ira e de chasco, repetia para a multidão, gargalhando, as graçolas trágicas do coelho do monte!

O pavor cobria todos os rostos. A praça estava repleta de gente, e apinhadas as janelas, varandas e telhados de todas as casas. 

-- Olá, rapazes, um espeto da ucharia! Tragam-me cebola e vinagre, que quero comer este coelho com molho de vilão!

Ria, ria tragicamente! Em seguida, emudeceu. A sua fisionomia cobriu-se de negrume, encarando ora num, ora noutro fidalgo. De súbito, como num ataque, arremeteu contra o Coelho, lançou-lhe as mãos ao saio no lado esquerdo do peito, e rasgou-lho com unhas de ferro, como se quisesse dilacerar-lhe o arcabouço e arrancar-lhe o coração, que para ele era o órgão delinquente, onde existia a alma perversa que planeou, conluiou o assassínio da sua linda Inês.

Depois, para os soldados, esfuziando rancor:

-- Tirem-me já estes corações. Quero mordê-los!

E mandava que abrissem a um o peito, a outro as costas com machados, com facas, que arrancassem os corações e os trouxessem numa escudela para o jantar.

-- Sim, para os postres! -- clamava.

Os soldados, apavorados, não sabiam que fazer nem como fazer. Olhavam-se atónitos, indecisos; mas o rei ordenava imperioso. Então, despiram o Coelho e o Gonçalves, pondo-os nus da cinta para cima. Derrubaram-nos. Já infernais golpes de faca dilaceravam Pero Coelho, quando este, soerguendo-se arquejante, num desafogo de incomportável dor, com a mão esquerda crispada sobre o peito, como a arreganhar as próprias carnes, rouquejou para o algoz, com a boca escancarada, os olhos enormes de aflição e de desespero, e toda a sua nobre alma repleta de infinito orgulho fidalgo:

-- Vilão, procura bem, que hás-de encontrar, aqui dentro, um coração, forte como o de um toiro e leal como o de um cavalo!

Pouco depois, por entre ralas de aspérrimo estertor, expirou. Ao lado, de bruços, o Gonçalves gemia agonizante.

E a obra dos carrascos continuou à machadada, à lançada, grosseiramente, com pancadas incertas na tábua do peito e nas costas (pancadas que soavam cavas), com golpes errados, umas vezes nas costelas, outras no esterno, espetando as pontas das lanças como alavancas, fazendo estalar os ossos e soltar o sangue a jorros, por entre os gritos da multidão e as vozes de comando do rei, que assistia, ensinando os soldados; e lá conseguiram, por fim, a um, esfacelar-lhe o tórax, a outro, arrancar-lhe a espádua e pôs a descoberto os corações. Os homens tinham as testas luzentes de suor, as caras borrifadas de sangue, e as mãos e os braços, remangados até os cotovelos, tão rubros como se os tivessem metido num tanque de vermelhão. Os corpos dos fidalgos jaziam em poças de sangue que empapava os cabelos e as roupas, tinham os troncos rechaçados, e os olhos, horrivelmente abertos de agonia, olhavam parados para o infinito!

O rei, que havia subido aos paços, continuava o seu jantar. Moços de câmara serviam iguarias, que um trinchante cortava, vindas da mão do uchão. Outros criados enchiam de vinho as fartas copas de prata; e o copeiro-mor, em punho a agomia, cuidava em especial do púcaro do rei. Aos lados, encostados à parede, assistiam senhores, e à roda da mesa, coberta de almezares moiriscos, estavam de joelhos os moços fidalgos.

O rei comia, quando lhe levaram numa escudela de prata os dois corações, rubros e quentes. D. pedro mirou-os engulhado, fazendo repulsivos esgares de nojo; em seguida, olhando-os com ódio, e vendo neles, concretamente, as almas dos seus inimigos, agarrou-os com as mãos convulsas, cravou-lhes unhas aduncas e espremeu-os rancorosamente, fazendo-os esguichar sangue; depois, sempre com olhos alucinados, levou-os à boca, mordeu-os, remordeu-os e estracinhou-os entre os seus dentes de tigre, sentindo o voluptuoso prazer de matar, às dentadas, as almas dos assassinos da sua amada Inês!

Levantara-se. Tinha a boca e as barbas a pingar sangue na opa de veludo, e as mãos encarnadas como as de um carniceiro. Assomou a uma varanda dos paços, chamou pelos soldados, e, arremessando desprezivelmente à praça essas sanguinolentas postas de carne, ordenou enfastiado à escolta: 

-- Queimem isso e atirem as cinzas ao tejo!

Lavou-se numa bacia de prata de água as mãos, limpou-se a uma toalha de holanda, que um guarda-roupa, dobrando o joelho, lhe apresentou; e, voltando à mesa, concluiu serenamente o seu jantar, numa câmara cujos tectos e paredes daí a pouco eram vermelhados pelos clarões das altas fogueiras que, em baixo, no terreiro, rechinavam os corpos de Álvaro Gonçalves e Pêro Coelho.


Acocorados a um canto, os músicos rufavam nos atabales.


Antero de Figueiredo, D. Pedro e D. Inês (1913)


Nota:  A execução vingativas de dois dos algozes de Inês de Castro perdura no imaginário popular, acerca de um rei que ficou no imaginário como um homem excessivo. Conto de recreação, sem outra atitude que não a de encenar esse acerto de contas. Parece-me particularmente boa  a forma como está caracterizada a destemperança insana do rei, fazendo-se eco dessa mesma memória colectiva.




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