quinta-feira, 16 de junho de 2016

#6 - A MOSCA VERDE (Natália Nunes, 1921-2018)

Não sabia como, mas o que é certo é que o petiz fora desencantar aquilo ao fundo do armário. E quando ele apareceu a mostrar-lha nas mãozitas, a mãe corou como no dia em que para sempre a tinha escondido.
Para sempre, talvez não. Não tinha sido com esse pensamento que, numa precipitação, ela a ocultara no armário no momento em que a criada lhe veio anunciar uma cliente. E muitas vezes depois ainda se lembarara dela, da mosca verde. Simplesmente não tivera mais coragem de ir buscá-la ao esconderijo, ao canto do segredo. Também nunca fora capaz de a destruir e, pelo contrário, sentia até uma espécie de alegria muito íntima de saber que ela estava ali ao seu dispor, que existia...
Mas, com o tempo, acabara por esquecê-la. Havia muitos anos que já nem uma só vez tal recordação passara pelo seu espírito.
-- Mãe, olha que linda! Dás-me a mosca verde, dás?
O filho, sentado no chão, procurava endireitar o arame das asas, desdobrar o tule amarrotado, e enquanto as suas mãozitas insistiam, traças gordas e sedosas escapavam-se do corpo da mosca verde e corriam pelo chão em busca de outro abrigo...
Na alma da mulher era como se qualquer coisa se fosse desdobrando também e crescesse e procurasse tomar uma forma ampla expansiva e perfeita e, ao mesmo tempo, logo o que quer que era voltava a enroscar-se, a contrair-se e a apertar-se num novelo de pudor e de amargura...
«Tinha sido numa tarde, ao pegar num pedaço de moirée de reflexos acobreados, que ela se lembrara da mosca que poisara um dia no telhado da casa, junto do peitoril da janela. O que tinha encontrado de extraordinário naquela mosca, fora a sua cor verde-vermelha e, depois, o que ela fizera quando abriu as asas! Abriu-as, e elas pareciam pintadas de todas as cores do arco-íris! Abriu-as, e começou na sua frente um bailado de volteios magnéticos, ora calmos e estáticos, ora vertiginosos, alucinatórios...
Pois nessa tarde -- já estava casada e já era modista de chapéus e até já tinha o primeiro filho -- bastara-lhe reparar nos reflexos da seda para imediatamente se ver transportada à sua adolescência. E outra vez chegou aquele calor do sol a bater no telhado, o zumbido das moscas, o viço da salsa no caixotinho de madeira, as borboletas brancas e as amarelas -- flores que tinham asas! -- as formigas pequeninas -- donas de casas escondidas sob as telhas -- e o azul do céu e a prata do rio... e a mosca verde a dançar numa fogueira de lumes irisados... E, com isto, o contentamento perfeito de se sentir viva que foi o seu naquela hora, a vertigem reveladora de uma beleza desconhecida que lhe trazia a mosca verde e, por fim, o ímpeto que ela teve de saltar pela janela e de ir para cima do telhado voltejar e adejar, rodopiar e ascender como as borboletas, a mosca verde e a tremulina do rio lá em baixo...»
Mas isso tinha sido havia já tanto tempo! Doze anos! Tivera realmente aquela hora de fantasia numa tarde de recordações... E ainda dessa vez ela sentira novamente o mesmo impulso de movimentar o corpo pelo espaço em movimentos rítmicos de harmonia! Então, já era uma mulher entregue a uma casa, e portanto, aquilo seria uma vergonha... Ela podia lá pôr-se a bailar pelas salas, envolvida nos tules e nas sedas que serviam para os chapéus!
Mas tinha sido depois que, num entusiasmo, pegara nos tecidos vaporosos e começara a dar forma à mosca, à maravilhosa mosca verde, mensageira de uma beleza que de longe a chamava e lhe pedia o estender dos braços, o ritmar dos passos, o estremecer do corpo, o fugir da alma...
E agora o filho a perguntar-lhe se podia ir brincar com a mosca verde...
-- Não, Carlinhos, isso não é para brincar.
-- Então isto não é um brinquedo, mãezinha?
Que tinha ela para responder à criança? Não seria verdade que aquilo fora uma espécie de brinquedo na sua vida? Que representava na sua existência de mulher modesta e quase ignorante, senão uma brincadeira, um motivo de inebriantes sonhos escondidos, aquele impulso de bailar sobre o telhado, e a mosca verde que o recordava? Só sabia que fizera muitos chapéus sem gostar de fazer chapéus. Desde os treze anos -- a idade em que ela vira a mosca verde -- que os pais, seus pobres pais, a tinham posto logo de aprendiza. Depois, aos vinte, casara com um caixeiro que passara a gerente de uma loja de fazendas. E quando vieram os filhos uns atrás dos outros, até os chapéus deixou! A vida era tão monótona, tão insípida, parada e descolorida! E tão confusa também! Porque fizera ela afinal a mosca verde? Porque tivera aquele desejo alado de ir bailar para cima do telhado? Além de tudo mais, a vida era estranha, cheia de enigmas, mas que nem os próprios viventes podiam desvendar...
E na sua vida havia alguma coisa que ela não percebia... Uma coisa que, naquele instante em que o filho mirava e remexia no corpo da mosca verde, lhe trazia uma vergonha imensa de si própria e uma vontade melancòlicamente amarga de chorar...



De A Mosca Verde e Outros Contos (1957); antologiado por João Pedro de Andrade em os Melhores Contos Portugueses, Lisboa, Portugália, 1959, pp. 429-434.

Comentário - Um prodígio de sugestão. Uma perplexidade: e uma 'mosca verde'. É como se o interdito (estamos em 1957) o fosse ainda mais pelo elemento repulsivo que é a 'mosca', embora aqui transmutada em símbolo de liberdade, essa liberdade de "voltear" que as mulheres não tinham.


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