terça-feira, 9 de março de 2021

#16 - A GRANDE SUBVERSÃO (Manuel Alegre, 1936)


 

Eram terríveis as rotinas, quase um rito iniciático, uma sagração. Havia o dia de esfregar a casa, o dia de lavar a roupa, o dia de arear os metais, o dia de tomar banho. E também o dia de pôr flores aos mortos. Havia ainda o dia do remédio para as bichas e o dia do pente fino, à cata dos piolhos apanhados na escola.

Nada mais contava senão o que estava determinado para ser o dia desse dia. As mulheres ficavam possessas de cada tarefa, como tangidas por uma demoníaca alucinação. Era uma coisa obscura, essencial, que desordenava e reordenava a casa, as horas, os hábitos, os próprios humores. Ninguém podia quebrar aquele ritmo, que girava, obsessivo, à volta da mãe. Os homens estavam de fora, mas ao mesmo tempo dentro. Tinham de resignar-se à ordem de batalha de cada dia.

O pai escapava-se, pelo menos tentava, ausentando-se para dentro de si, sentado na cadeia, alheio aos ruídos, até mesmo às perguntas. Era o seu modo de resistir à teia tecida pela aranha infernal da rotina. Sentado na cadeira, olhando para longe, procurava manter um espaço inacessível à invasão dos deveres que roíam, como toupeiras, as próprias fundações da casa. Não era fácil. Quando menos se esperava, as criadas começavam de repente a levantar os tapetes, a virar as cadeiras de pernas para o ar, a arredar os móveis, a bater furiosamente nos tapetes pendurados no quintal. O pai levantava-se, às vezes resignado, às vezes revoltado. Então saía, batia com a porta, sumia-se. E só voltava uns dias depois.

Eu tinha medo daquelas operações de desarrumação e esfrega. Temia que o pai partisse e nunca mais voltasse. Mas ele acabava sempre por regressar. Durante uns dias, o frenesim afrouxava, havia uma espécie de trégua. Mas logo recomeçava. Eram assim os hábitos. As casas da vila estavam sujeitas a uma ordem preestabelecida. As pratas tinham de brilhar, e os cobres, os talheres, os vidros das janelas, os cristais. Era mais importante do que o pendor dos homens para a divagação e o silêncio.

De certo modo não havia lugar para o pai nem para mim. Havia lugar para a nossa presença na ordem incessante dos ritos, a horas certas. Não para as cavalgadas solitárias que cada um tinha necessidade de fazer sem ser interrompido pela tarefa do dia. Mesmo que fosse o dia de receber visitas, com chá e bolos. Não tínhamos direito à nossa desordem interior, éramos prisioneiros de um espaço constantemente invadido por obrigações cujo sentido não podíamos entender. Não era por mal, era assim.

Eu tinha herdado do pai uma certa inclinação para a melancolia e para o outro lado das coisas. E talvez da mãe uma rebeldia que ela reprimia impondo-se e impondo-nos a ordem severa das rotinas.

Por isso comecei muito cedo a subversão interna: recusando o remédio das bichas, levantando as saias às criadas, jogando furiosamente o pião no chão recém-encerado, transformando os cobres e as pratas em alvos da espingarda de pressão de ar que o pai me tinha dado quando fiz a terceira classe, talvez com a secreta esperança de que eu começasse a disparar contra a ordem estabelecida dentro da casa.

E vieram as grandes cenas, os castigos, as lágrimas da mãe incapaz de dominar aquela insurreição que lentamente subvertia tudo. Eu crescia contra os ritos. E os ritos começaram a ceder. Não que a mãe capitulasse; era, por assim dizer, um reequilíbrio de forças dentro da casa. Ou talvez o prenúncio duma nova era contra a modorra que reinava no país, nas casas, nos silêncios dos pais sentados nas suas cadeiras, desistentes, rendidos. É certo que se ouvia a BBC, à noite, depois do jantar. Recordo sobretudo uma frase que para sempre me alvoroçou: "O homem tinha os pés inchados, estava morto." Por vezes o pai comovia-se, levantava-se e dia: Viva a Inglaterra. E eu sentia um tambor dentro de mim. Mas ele voltava a sentar-se, e nada mais acontecia.

As horas, os hábitos e as rotinas nada podiam contra o ritmo novo que irrompia dentro de mim. Foi primeiro uma espécie de delírio, quase uma alucinação. Eu acordava aos berros a meio da noite e começava a cantar uma canção sem nexo. Outras vezes desatava aos saltos e às cambalhotas e só parava exausto a chorar, nos braços da mãe, aflita, derrotada, quase esquecida do seu pequeno império de obrigações quotidianas.

Até que veio aquela estranha e súbita sensação de morte iminente: um frio na nuca, um arrepio, o mundo a desvanecer-se e eu a cair para dentro de um buraco negro. Era preciso que alguém me agarrasse e me prendesse as mãos com força nas suas mãos. A mãe teve de passar dias e noites junto de mim, a mão dela segurando a minha, sob pena de eu me desprender e cair sabe-se lá para onde.

Talvez eu tenha estado muito perto da morte. Nenhum médico o soube explicar. Nem sequer o espiritista que um dia me trouxeram, às escondidas do pai, já quase em desespero de causa. Talvez eu estivesse possesso de forças indomáveis. O certo é que as rotinas foram perdendo o seu domínio naquela casa. A mãe passou a ocupar-se mais de mim e menos dos seus titânicos deveres. O pai recuperou o espaço há muito perdido. Uma harmonia difícil, quase perigosa, subverteu os hábitos, as horas, os humores. Não direi que era a felicidade; era outro ritmo, a voz do sangue contra a ordem cega das coisas.

Pouco a pouco deixei de sentir aquele buraco enorme ao pé de mim. Estava de volta. Curiosamente, foi no fim da guerra. Talvez tenha sido coincidência, talvez não. Era um dia de Maio, sentia-se lá fora a festa, os foguetes, os risos. O pai tinha lágrimas nos olhos, ia à varanda e não se continha: Viva a Inglaterra. Agora com toda a força. E subitamente eu estava de volta.

Fiz então uma festa à mãe, sorri e levantei-me. Um melro cantava no jardim. E eu sentia uma espécie de assobio por dentro. Era um ritmo desconhecido, palavras, imagens. Algo que cantava e me chamava sem eu saber porquê, para uma página aberta. Ou talvez lá para fora: para o Sul, para o Sul.

Nota: Apesar de arrolado num livro de contos, estamos perante uma rememoração poética de episódios domésticos da infância. Um retrato de uma pequena aristocracia / burguesia provincial na primeira metade da década de 1940, com o marcado papel matriarcal intramuros, e o despontar de uma vocação poética anunciada por aquele assobio por dentro.

O Homem do País Azul (1989); 7.ª ed., Lisboa, 2009




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