sábado, 20 de agosto de 2016

#10 - O CADÁVER DE JAMES JOYCE (José Luís Peixoto, 1974)

Quando acabei de escrever o meu primeiro romance, fechei-me em casa durante duas semanas. Nesse tempo fechado do mundo, vivi cada olhar de cada personagem, cada esperança, cada angústia. Na altura, era muito novo. Creio que se o tivesse feito hoje, me teria suicidado no último dia dessas duas semanas, como desfecho lógico. A lógica, o absurdo da lógica e a lógica precisa, milimétrica, do absurdo, são para mim assuntos que me absorvem, como se fossem, de facto, a primeira regra da minha vida. Mas, como disse, era muito novo, e esse pânico não tinha ainda atingido as dimensões actuais que, juntamente como outros pânicos cansaços, acabarão por ser o meu fim. Nesse tempo, eu era o único leitor de mim próprio e ninguém esperava nada das minhas palavras. A vida era menos difícil, portanto. Eu considerava-me um grande escritor desconhecido e era quase feliz, porque fechava os olhos a muitas coisas.
No primeiro dia em que saí à rua, depois dessas semanas, trazia ainda no olhar o olhar das personagens e passeei-me por Lisboa, como se não conhecesse Lisboa, como se me admirasse com tudo. As horas dessa tarde muito fria de Janeiro passaram e eu passei com elas. Aos poucos, deixei de ser as personagens para ser o narrador: uma voz maior que eu, uma voz que tinha surgido do romance como uma voz da terra. Descrevi, para mim próprio, as paredes, os pombos a andarem devagar no chão, como se todos os pombos fossem uma criatura maior e que se amontoa e se estilhaça. Descrevi, para mim próprio, as pessoas a olharem-me e imaginei o que elas imaginavam de mim. Mas também aos poucos, o narrador saiu de mim, talvez assustado com o ridículo de ser um narrador a descrever mentiras dentro de uma pessoa, e voltei a ser o que sou: qualquer coisa absurda que procura uma lógica impossível e que se chama Zé Luís. No entanto, depois de duas semanas a observar palavras, depois de um ano a desenterrar palavras, eu era alguém que só podia fazer coisas grandiosas. Só essa ideia me parecia lógica. Entrei numa livraria do Chiado. Vi-me a entrar na livraria e imaginei: José Luís Peixoto entra numa livraria, onde ainda se ignora a importância das suas palavras. Creio que o narrador ainda devia andar dentro de mim, escondido em algum canto escuro.
Não sei como explicar. Tirei um exemplar do Ulisses da prateleira e comecei a ler. Nunca o tinha lido todo. Ainda não li. Não acredito que alguma vez o vá ler todo. No entanto, tirei um exemplar da prateleira e li dois parágrafos. Gostava de escrever assim. O efeito que aquela breve leitura teve em mim foi inesperado. Instantaneamente, lembrei-me de ter lido, havia alguns anos, numa enciclopédia da minha irmã, que o James Joyce estava enterrado em Zurique. Lembrei-me também que, na altura tinha acabado de ler The Dubliners e que senti algo de revolta. Na livraria, sem que os meus olhos vissem a livraria, imaginei-me, secretamente, um herói. Eu tinha escrito um dos maiores romances da história da literatura. Eu só podia fazer coisas grandiosas.
Em casa, guardei duas camisolas dentro de uma mochila e saí. Tinha dinheiro e fui para Santa Apolónia. Comprei um bilhete para Zurique. Não sabia que se podia ir para Zurique de comboio, mas fui informado de que o Sud-Express ia sair dentro de poucos minutos e que, assim que chegasse a França, devia mudar de comboio. Fui todo o caminho de pé no corredor. Assustava-me a ideia de não me conseguir controlar e de poder contar o meu plano a qualquer emigrante de Paris ou a qualquer francês que andasse a fazer um interrail e que partilhasse comigo o vagão. Fui sempre a olhar pela janela e, interrompido de vez em quando por revisores, pensei sempre que ia chegar a Zurique e que ia desenterrar o corpo do James Joyce e que ia levá-lo para Dublin. Donde nunca devia ter saído. Troquei de comboio e cheguei a Zurique.
O dia estava a acabar. Telefonei à minha mãe e disse-lhe que estava no Rossio. Estava num telefone público da Suíça. Tenho uma licenciatura em alemão. Tenho um diploma carimbado que garante que sou licenciado em alemão. Debaixo do carimbo, falta dizer que foram quatro anos de cábulas e de ajudas por parte de alguns colegas mais caridosos. Mas, mesmo assim, o meu alemão básico chegou-me para alugar um quarto numa pensão pequena, pequena, minúscula, mesmo ao lado do cemitério. A senhora da recepção, com as mãos sobre os papéis de registo, virou os óculos na ponta do nariz quando lhe disse que fazia questão de ficar no quarto ínfimo, que tinha uma janela do tamanho de um isqueiro com vista para o cemitério: o branco das campas desenhado no negro, as formas das árvores esculpidas no negro.
Quando o sol nasceu, tinha as pernas dormentes. Desci para o pequeno-almoço; torradas e café com leite que a senhora da recepção me serviu contrariada. Comi devagar. Não tenho apetite de manhã. Esperei três cigarros até que abrissem o portão do cemitério. Eu e duas velhas fomos as primeiras pessoas a entrar. Tentei procurar a campa sozinho, mas perdi-me. Encontrei uma das velhas a trocar flores murchas de uma jarra e perguntei-lhe. James Joyce? Nunca ouvi falar. Não lhe expliquei. Há coisas que não vale a pena tentar explicar. Andei toda a manhã, às voltas no cemitério, a olhar para nomes, a olhar para datas. Por fim, era já hora de almoço, estava com fome e frio, encontrei a campa do James Joyce. Estava abandonada. Nenhuma mulher lhe ia trocar as flores murchas, não tinha flores. Tinha musgo à volta das letras. James Joyce escrito a musgo.
Voltei à pensão. A senhora da recepção assustou-se com a minha chegada. Assustou-se ainda mais quando lhe perguntei pelo almoço. Pão, duas salsichas fritas e dois ovos estrelados pela senhora da recepção com um avental de folhos. Saí para ir comprar uma picareta e uma pá. Tive que apontá-las com o dedo. Não sei dizer picareta em alemão. Fui para o meu quarto dormir e sonhar. Acordei a meio da noite. Acordei logo totalmente desperto, como se não tivesse acordado, como se não tivesse dormido. Agarrei a picareta, a pá e a mochila. Saí do quarto sem fazer barulho. Na rua vesti as duas camisolas que trazia na mochila. Estava muito frio. Subi para cima de um Mercedes que estava estacionado e saltei o muro do cemitério. Procurei o caminho que conhecia e fui directo à campa do James Joyce. Enfiei a ponta da picareta numa das juntas do mármore e fiz força, força, força. O mármore não se movia um único som de mármore a arrastar-se. Quando as minhas forças já desesperavam, fechei os olhos e, com toda a vontade dos meus braços e do meu corpo inteiro, ouvi o mármore a soltar-se. Comecei a cavar. A picareta e, depois, a pá. O som da picareta, e, depois, o som da pá. O meu entusiasmo a apressar-me. Depois, a picareta a acertar em algo. O tesouro. A pá a tirar a terra solta. As minhas mãos a tirarem a terra solta. A tampa do caixão partiu-se debaixo dos meus pés. Afastei pedaços de caixão Lá estava o James Joyce. Segurei-lhe o braço direito, a mão que escreveu o Ulisses, e os ossos separaram-se pelas juntas. Segurei-lhe o crânio: os olhos do James Joyce, o crânio onde nasceu o Ulisses. Olhei para o céu e não encontrei a lua. Algumas estrelas entre as nuvens. Na noite, senti-me grandioso e feliz. Guardei tudo o que me parecia pertencer ao James Joyce dentro da mochila. Os ossos, uns contra os outros, faziam um barulho brando. Saí da cova e comecei a tapá-la com pás cheias de terra. Animado pelo peso do James Joyce nas minhas costas, empurrei de novo a pedra sobre a campa. De manhã, estava na estação de comboios.
Sentado num vagão, levava a mochila sob o colo. Pensava que era revelador que o James Joyce, ele próprio, pesasse menos do que a maioria das edições do Ulisses, quando à passagem pela fronteira, o comboio abrandou e parou. Entrou um polícia, bigode, patilhas, e pediu-me o passaporte. Apontou para a mochila e perguntou; chocolates? Sorri. Saiu. Meio cigarro depois, o comboio continuou. A paisagem, as árvores despidas, as poças de água, deixavam-me pensar. Por vezes, as aldeias. Na pequena estação de uma aldeia cinzenta e verde, decidi sair. Entrei num café, conheci um senhor. Ofereceu-me um quarto, ofereceu-me trabalho a tratar de cinco vacas. Apaixonei-me pela filha do senhor. Guardava a mochila atrás de uma cómoda. Passava as noite, no quarto ao lado da filha do patrão, Sabine era o seu nome, a pensar nela e a sofrer por ela. Às vezes, retirava o James Joyce de dentro da mochila e estendia-o sobre a cama para não ganhar mofo. Passaram-se três meses de que não me orgulho.
Quando decidi ir-me embora, era já Primavera. Três das cinco vacas iam parir, mas eu já estava farto de amor não correspondido e Dublin esperava-me. De madrugada, dirigi-me à pequena estação e apanhei o primeiro comboio que passou em direcção a Paris. Troquei de comboio. Estava cansado. Mesmo James Joyce, tão leve, parecia-me demasiado pesado. Considerei ainda a hipótese de abandoná-lo num contentor do lixo de Paris, mas eu não sou daqueles que desistem. Enquanto tenho um resto de esforça, tenho um resto de esperança. Eu não sou daqueles que desistem. E cheguei a Calais. Os barcos estavam cheios e só podia seguir viagem no dia seguinte. Enganei um inglês. Roubei-lhe o bilhete e também lhe teria roubado a carteira e o relógio se me apetecesse, mas o bilhete bastava-me. Em Inglaterra viajei sempre de autocarro. Passei metade do tempo enjoado e metade do tempo a dormir, de boca aberta, tombado sobre o passageiro do lado, abraçado ao James Joyce. Em Londres, decidi apanhar um avião directo para Dublin. Estava muito cansado e muito sujo. Ainda cheirava a vaca. Tinha saudades das personagens do meu romance e vontade de telefonar à minha mãe e dizer-lhe que estava no Rossio, estando mesmo no Rossio.
Depois do check in, depois da mochila ter sido radiografada como bagagem de mão, depois de me terem avisado com uma piscadela de olho que não se podia viajar com comida, mas que desta vez passava, sentei-me numa das cadeiras da primeira classe. A hospedeira tirou-me uma palha do cabelo e serviu-me champanhe. Respirei. A centenas de metros de altura, abri pedacinho do fecho da mochila e olhei para o James Joyce. Confiei nele, já éramos amigos, pousei-o no meu assento e fui à casa de banho. Lavei a cara. Quando voltei, estavam dois miúdos a atirar o James Joyce um para o outro. Agarrei a mochila furioso e contive-me para não dar uma estalada ao miúdo. A mãe dele, sentada ao lado, acordou e disse: oh Sean. Apetecia-me chegar a Dublin. A aterragem foi suave.
As ruas, os pubs, as pessoas. Atravessei três pontes até encontrar um parque. No parque, caminhei até encontrar uma árvore que me agradasse. Era uma árvore grande, talvez um plátano. Entre as raízes, cavei com as mãos. Primeiro a relva, depois a terra. A noite crescia devagar na tarde. Passavam pessoas que me olhavam por um instante, mas todas desviavam o olhar. Quando não estava ninguém, nem nos caminhos do parque, nem atrás dos arbustos, enfiei o James Joyce, dentro da mochila, no buraco e cobri-o com terra e com uma camada de relva. Olhei por instantes para o sítio onde o deixei e considerei que tinha feito algo de bom. Levava uma falta no coração. Sentia pena de deixar o James Joyce. Na altura ainda não sabia que quem deixa as coisas que ama espalhadas pelo mundo, sente sempre falta de algo onde quer que esteja. Fui para Lisboa. Na noite seguinte, dormi já na minha cama, abraçado ao manuscrito do meu primeiro romance.


Nota - Um conto que, não sendo um primor de estilo, salva-se, e bem, pelo absurdo e pelo humor.


2 comentários:

  1. Vertiginoso. Desconcertante. Original (no sentido de singular). Narcisista? (O conto ficava igualmente bom sem os auto-elogios...)

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    1. Era uma cabeça, o JJ:) Creio que o ZéLuisPeixoto do conto deverá ser visto como personagem, e portanto isentaremos o escritor Peixoto desse pecadilho...
      Abraço

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