terça-feira, 5 de março de 2019

#13 - DOS PERIGOS DO RISO (José Eduardo Agualusa, 1960)

quando parámos o jipe é que os vi. Estavam ali, à beira da estrada, meio escondidos pelo fragor do crepúsculo -- o velho e os seus lagartos. Eram lagartos enormes e tinham o pescoço enrugado como o do velho e os mesmos olhos miúdos e misteriosos. Ele reparou no meu interesse e disse o preço:
-- Cinco milhões, paizinho. Cada um.
Pareceu-me um preço justo. Valia a pena discutir:
-- Cinco milhões?! Por cinco milhões só se eles falassem...
O velho olhou-me muito sério:
-- Falar falam pouco, sim, meu pai. Mas riem muito.
Riam, os lagartos?! Riam de quê? O velho encolheu os ombros. Ele não sabia. Riam à toa, como os malucos, riam uns com os outros enquanto tomavam sol. Achei que só por causa daquela resposta o velho merecia o dinheiro.
Dei-lhe cinco notas, que ele alisou cuidadosamente antes de as guardar no bolso. Depois entregou-me o maior dos lagartos:
-- Chama-se Leopoldino, este, e é o mais espertíssimo.
Quis saber o que ele comia. O velho explicou-me que o bicho sabia tratar de si. Alimentava-se de moscas, baratas, mosquitos, mantinha a casa livre de insectos. Tentei brincar:
-- E além disso podemos contar-lhe anedotas, não é?
O velho não me respondeu. Debruçou-se sobre os lagartos e disse-lhes qualquer coisa. Pareceu-me que falava uma língua trazida de outro mundo. Falava uma brisa, um sopro, um rumorzinho vegetal e húmido. Entrei no jipe e fiquei a vê-lo desaparecer, uma sombra dentro da noite escura, com a sensação de que era ele que tinha feito troça de mim.
Porém, quando estávamos quase a chegar ao Sumbe, o lagarto começou a rir. Sei que parece estranho, mas é a pura verdade: Leopoldino ria. Não ria exactamente como uma pessoa, claro, ria como uma pessoa semelhante a um lagarto, mas ria. Eram gargalhadas secas, cínicas, que estalavam dentro do jipe de uma forma vagamente assustadora. Eu ouvi-o e não tive vontade de rir. O meu amigo, que conduzia o jipe, ficou ainda mais inquieto:
-- Essa besta está-se a rir de quê?
Encolhi os ombros (como fizera o velho). E eu sabia? Talvez ele fosse de rir à toa, como os malucos. Disse-lhe que os lagartos daquela espécie comunicam uns com os outros, às gargalhadas, enquanto tomam sol. O meu amigo, no entanto, tinha outra opinião:
-- Não! -- É óbvio que está a rir-se de nós!...
Aquela suposição instalou a desconfiança dentro do jipe. Abri a caixa de sapatos onde guardara Leopoldino e coloquei-o à nossa frente no tablier. Os olhos dele eram muito antigos. Todo ele era muito antigo Observámo-nos os três em silêncio. Leopoldino tinha um ar desafiador, talvez um pouco arrogante, mas não descobri naqueles olhos o mínimo lampejo de ironia. Tentei tranquilizar o meu amigo:
-- Os papagaios riem, até falam, mas o riso deles, ou aquilo que dizem, não tem significado nenhum. Ora os répteis são parentes das aves, porque é que não podem existir lagartos capazes de imitar o riso dos homens?
O meu amigo começava a ficar nervoso:
-- Não me lixes! Sei muito bem quando é que um lagarto se está a rir de mim...
Colocada a questão daquela maneira já era um assunto pessoal. Uma gargalhada é muitas vezes pior do que o pior insulto. Ainda por cima o riso de Leopoldino deixava campo aberto a todas as especulações: podia estar a rir-se da estupidez de dois sujeitos que compram um lagarto, na estrada Luanda-Sumbe, por cinco milhões de kwanzas; ou talvez soubesse alguma coisa (sobre nós) que seria preferível que ninguém soubesse (nem sequer a nossa consciência). Disse isto apenas para fazer conversa, mas o meu pobre amigo levou-me a sério:
-- Deve ser por causa daquilo com a Ana -- murmurou sombriamente -- o maldito bicho sabe coisas de mais.
Eu ignorava o que é que tinha acontecido entre ele e a Ana; nem sequer sabia quem era a Ana, mas achei melhor ficar calado. Devia ter sido alguma coisa de um ridículo estupendo. Se ele me contasse talvez eu não fosse capaz de conter o riso. E se eu me risse, naquela altura, isso seria o fim da nossa amizade.
-- O pior ainda não te disse -- confessei --, a acreditar no velho, ele também é capaz de falar.
-- Ele fala, o animal fala?! Não, isso já é demais!...
Encostou o jipe na berma da estrada, mantendo os faróis acesos, e saltou para o asfalto. Na mão direita segurava uma pistola.
-- Vou executar esse muadiê!...
Era a primeira vez que o via com uma arma. Saí do jipe em sobressalto:
-- É claro que não vais. O lagarto é meu.
Ele olhou para mim e percebi que não estava a brincar. O meu amigo tinha passado pela guerra. Dois anos no Cuíto Cuanavale.
-- O lagarto é meu -- disse-lhe --, deixa-me ser eu a tratar disso.
Tirei-lhe a pistola da mão, agarrei na caixa de sapatos onde estava Leopoldino e afastei-me alguns metros para o interior do mato. Os faróis do jipe iluminavam o capim seco, os altos cactos, o largo contorno de um embondeiro. Na noite imensa, límpida estrelada, só se escutava o cantar rouco de um grilo. Pousei a caixa no chão, apontei para ela e disparei três tiros. Quando o eco do último disparo se dispersou fez-se um fantástico silêncio. E então, subitamente, uma rajada de metralhadora, à minha esquerda, alvoroçou a noite. Fiquei um instante transido de pavor e depois voltei-me na direcção do jipe e comecei a correr. Atrás de mim, sobrepondo-se ao fragor do tiroteio, ouvi distintamente a gargalhada seca de Leopoldino. O meu amigo já estava ao volante:
-- Despacha-te muadiê, pouca sorte, parece que começaste uma guerra.
Enquanto mergulhávamos velozmente na noite, de luzes apagadas, ele voltou-se para mim:
-- Mataste o bicho?
Respondi com um grunhido. O que eu queria era sair dali.
-- Tinha de ser -- disse o meu amigo, e o sorriso dele brilhou na escuridão. -- O tipo sabia de mais!...


Fronteiras Perdidas (1999)

Nota - Uma obra-prima de humor e absurdo.

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