terça-feira, 10 de agosto de 2021

#19 - VERMELHO (Ruben A., 1920-1975)


Todas as vezes que entrava numa sala onde estava gente ele fazia-se vermelho.

Era-lhe normal corar quando alguém mentia. Sentia a mentira à distância e captava-a sem mais nem menos. O sangue dava-lhe tabefes desproporcionados e quase sufocava ao ver uma senhora a dizer quantos anos tinha. A mentira fazia-o sofrer e sentia o sopapar das veias ao vestibular-se nos hotéis dos países mais conhecidos.

Morava no bairro da Estrela. Era uma casa pequena mas alegre, onde uma palmeira fazia subir os pensamentos. Ouvia passar o eléctrico cheio de arfares de travões aos buffs buffs que o faziam pensar no momento da vida em que mais se cansava, quando subia por aquela encosta acima para ver a entrada da barra com o pôr-do-sol encarnado de bom tempo para o dia seguinte.

A casa tinha um andar térreo e um andar por cima. Tinha uma porta e quatro janelas e ele entrava e saía várias vezes ao dia.

Desde novo que era corado e desde menino que sabia ler. Aprendera com facilidade a soletrar e a fazer as contas da tabuada sem que os outros meninos ligassem muita importância ao que ele dizia. O pior era quando a mentira se apoderava de alguns dos amigos da escola -- ele via-se aflito, não podia esconder a sua cor, ficava todo vermelho. Era certo e sabido que o outro menino dizia ir ter a casa da avó, mas na verdade a razão era que o menino tinha ficado a brincar com outros amigos e por isso não sabia a lição.

Ia crescendo e ia corando. O mundo mentia tanto que ele sentia-se triste quando ao espelho via a cor dominante a berrar sem um gesto de simpatia ou piedade. Ia crescendo só -- era um apenas no mundo. Tratava-se a si mesmo como um apenas e nunca dizia apenas porque apenas no oral era feio. Ele tinha um gosto muito feio pelas outras cores e pelas outras cidades. Gostava de Lisboa porque não havia automóveis nem novos-ricos nem incultos nem bisbilhoteiros nem candeeiros de iluminação pública. Gostava de sair pelos parques e assistir às conversas dos noivos nos bancos mais populares de vista sobre o rio. Ali estava durante horas e, de vez em quando, corava pela falsa declaração de um noivo ao querer jurar o seu amor eterno a uma inocente que estava a ser convencida da beleza das palavras do estudante de medicina. Ele estava ali ao lado, vermelho como um pimento, quando o estudante pendurado sobre a pequena lhe contava os prazeres conjuntos de terem filhos a horas certas. Era tão bom se casassem dentro de dois anos: «Eu dava-te sempre tudo quanto me pedisses e só viveria para te fazer feliz. Casa comigo, podemos ir até casando particularmente de vez a vez conforme a época for propícia ao encontro do que é meu com o que é teu. O que estará a fazer aqui ao lado este homem tão encarnado, parece um pano de toureiro ou um lenço tabaqueiro dos almocreves de Colares.»

Ele não sabia onde é que eles se tinham conhecido. Talvez nalguma festa de Bombeiros Voluntários, e talvez até no clube local, onde a vida associativa proporciona o encontro entre indivíduos de sexo diferente, entre verdes e vermelhos. Ela devia ser empregada de escritório, pois trazia uma fita de máquina de escrever à volta do cabelo e o teclado em que falava era nacional. Ela contava-lhe que o patrão era muito bom para ela e lhe dava folgas quando queria  e aumento de ordenado de seis em seis meses. Ele era muito respeitador Nesta altura o outro que estava ao lado ficava tão corado, tão vermelho que o estudante de medicina até disse baixinho para ela: «Este doente deve sofrer de doença artrítica, é um caso de gravidade, parece que vai rebentar.»

Dali ele passou para mais acolá. Desceu a avenida e começou a conversar sozinho, pois não via ninguém. Estavam todos a contemplarem-se nos altos das árvores e outros a estudarem-se em livros muito grandes que se viam pendurados às janelas. Ele conversava: era agradável ir por ali abaixo sem ninguém que o incomodasse. Podia conversar à vontade. Conversava com os anúncios luminosos em quadrados e rodelas encarnadas que estavam sempre a mentir. Ele só lhes dizia que não tinham que estar aborrecidos, pois ninguém olhava para eles. Os carros eléctricos estavam nos museus particulares das montras em evidência. Então entrou num bar e ficou calado, não corou. Ficou branco. Todas as mulheres falavam verdade e perguntaram se ele não queria ir com elas. Ele corou então ao dizer que tinha mulher e os filhos em casa à espera. Não podia. Não, não, não -- era mau ficar. Tomava só uma caneca das mais pequenas e partia.

Ele sem família sentia-se como peixe manso dentro de aquário. Parecia um solitário sem excitações a passear de um lado para o outro e a olhar para todos com uma simpatia de apoteose. Mexia-se e andava-se de cima para baixo como quem se ignora de semelhantes e ao caminhar pelas ruas da baixa assoprava um nordeste que que fazia virar as pessoas ao contrário. Ele não se importava, nem sabia mesmo como importar-se naquele seu flagelo colorido.

Um dia de manhã resolveu casar-se. Levantou-se mais cedo, barbeou-se mais depressa, vestiu-se a correr, comeu sem apetite e foi pela porta fora. Queria casar. O sonho que tivera de noite mostrava-lhe uma noiva feita de boa pessoa e que vivia com os pais numa rua perto do Largo da Estrela. Ela esperava-o de braços abertos com os pais a darem palmas por terem encontrado um genro tão sério. Ele estava cheio de confiança, já não corava havia dias e tudo se apresentava bem. Ela era boa para ele e preparava-lhe tudo quanto ele mais gostava. Sentia-se feliz pela primeira vez na sua vida. Amolecia-se naquela espécie de felicidade que só se tem uma vez na vida e que faz perdoar os roubos mais infames. Era uma noiva agradável e sem complicações que aborrecesse a sua alma. Ela compreendia muito bem, compreendia como só compreendem as pessoas que não existem. Levava-o a longos passeios aos domingos e de mãos dadas saltavam as dunas mais próximas. Ao pôr-do-sol beijavam-se para depois voltarem a casa e na companhia da futura família cearem ao som de uma telefonia que era horrível pelas vozes monocórdicas dos seus cantores habituais. Isto parecia-lhe uma castração da natureza e às vezes desligavam o programa oriundo de festivais dedicados a colectividades organizadas para recreio de trabalho. O andar da casa dava para o Jardim da Estrela e era só atravessar os portões que se podia logo respirar bom ar. 

Ela nunca o vira corar e ele nunca lhe dissera que ficava vermelho quando mentiam ao seu lado. Ele pensava que isso talvez tivesse importância se houvesse filhos -- os filhos podiam sair aptos a ouvirem mentiras sem se complicarem epidermicamente. Gostavam muito de ir ao Jardim Zoológico, onde o roseiral em flor os encantava  pela sua ternura plácida. Os pais às vezes também iam no passeio, mas outras vezes ficavam em casa a fazer planos. A filha ia viver com ele, pois a casa grande -- e que ficava ali perto -- servia muito bem para ambos e, até para mais, caso houvesse filhos eles podiam muito bem aumentar um andar à casa.

Estava ele a sonhar toda esta facilidade de vida quando acordou e disse para consigo que queria ir casar.

Então saiu de casa a correr e foi ao pé do Jardim da Estrela à procura da casa, ou melhor do andar, onde ela devia viver. Atravessou o Jardim, saiu o grande portão e olhou para todas aquelas casas sem saber bem onde é que ela estava.

Bateu a uma porta que foi aberta por um mordomo muito compenetrado que disse: «Legação da República Argentina em Portugal!» Ficou gago. Não era ali. Ela era portuguesa -- não era de outros hemisférios. Não, ela devia morar ali ao pé. Pediu desculpa, tinha-se enganado, não havia dúvida. Talvez morasse num dos prédios mais acima. Era fácil encontrar. Mas, é verdade!, ele não tinha o nome dela? como é que a podia encontrar? Bateu noutra casa -- era a dos Croft de Moura. Vinha o Pedro a sair que lhe perguntou: «Posso ajudá-lo nalguma coisa?» O Pedro percebeu que ele estava aflito e como é boa pessoa quis logo ajudá-lo. «Não, disse ele, não deve ser aqui, desculpe mas creio que estou enganado.» Que coisa estranha, lembrava-se perfeitamente da casa e agora não era capaz de a encontrar. O Pedro disse que ia apara a Baixa, tinha muito que fazer e não o podia ajudar agora, mas talvez numa das casas mais acima, antes do quartel da Guarda Republicana, ele a pudesse encontrar.

Veio para o jardim e ficou a olhar para tudo o que não se via. Ficou abatido, perplexo, até se decidir a ir ali acima e bater todos os prédios à procura dela.

Pareceu-lhe um prédio encarnado onde havia uma certa alegria de caixilhos e uma lembrança de outros tempos. Pensou que devia ser aquela a casa. Já não se lembrava bem porque no sonho tudo tinha sido tão rápido que nem lhe dera tempo para ficar com o número de porta e com o apelido da família. Não podia ser outra a casa.


(continua)

Ruben A., Cores (1960)

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